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12 de outubro de 2024
sábado, 12 de outubro de 2024
José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.
A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade de cada um deles e não reflete a posição de ES Hoje

Pela estrada: uma reflexão sobre margens e cartas de amor ao Rio Doce

Passava das nove da manhã, quando ao lado, pela janela, o rio Doce era acompanhado pelo trem que serpenteava suas margens.  O barulho dos carros deslizando nos trilhos, o som da maquina que puxava e nos conduzia, era ritmado. A paisagem que passava pela janela era tranquila. O tempo parecia ser de outra dimensão.

Longe do ritmo acelerado das cidades. O tempo nessa jornada parece ser desacelerado. A maioria da paisagem ainda é mata; rio e pasto. A grande serpente marrom integra as minas e os mares. Marcações humanas pontuam sua existência numa natureza que parecia parceira. Lentamente invadida pelas casas que sobem o morro; pelos equipamentos urbanos de iluminação e transporte.

Viajar pelo rio Doce parece ser viajar por parte da história capixaba. Histórias ribeirinhas. Ribeirinhos. Lugares de afeto, enquanto o trem desliza.

Pela estrada: uma reflexão sobre margens e cartas de amor ao Rio Doce

Mas, o rio segue em sua lentidão. Qual serpente alimentada, desliza entre suas margens, como se alheio pudesse estar das cidades que cruza.

Violentado, sua mansidão se tomou de dejeto da especulação do minério. O rio que tanto serve ao ecossistema que o cerca – e por ele é definido -, agora jaz caudaloso de rejeitos da mineração. Adoecido, o grande rio Doce sobrevive. Todos os seres que dele necessitam são afetados. Mesmo depois de alguns anos.

Essa reflexão, tomada por viajar suas margens – maculadas pela ganância imperialista, me lembrou todo o esforço feito para salvar o rio nesses últimos anos. Pescadores não podem mais pescar ou se alimentar do rio, a água, sobrecarregado de elementos que afetam a vida… inerte e caudaloso serpenteava os mesmos lugares, agora adoecido…

Piatan Lube, um jovem artista capixaba empenhado nas práticas colaborativas e sociais nas artes, entre 2018 e 2020, dedicou parte de sua obra a ouvir as pessoas ao longo do rio Doce. Trocava frutas e conversas por cartas. Cartas de Amor ao rio doce. “não posso mais fazer horta. Não pode nem regar não. Minha mãe lavava roupa no rio. Não pode lavar mais não. Os peixes que pulavam ai a fora, agora num tem nem força”. Esse foi um dos depoimentos coletados por Piatan Lube.

Pela estrada: uma reflexão sobre margens e cartas de amor ao Rio Doce
Cartas de amor ao Rio Doce coletadas em residência artística nas comunidades ribeirinhas ao rio doce, no ES, por Piatan Lube/2019/2020

Lube, como artivista (dedicado às questões de transformação social) declarou, “A voz ativista, de denúncia, é calada sistematicamente a cada dia, e a arte parece ser o único ponto capaz de fazer aflorar outras posturas políticas. Queremos procurar o potencial artístico e crítico em cada comunidade e afirmar uma nova postura do artista diante da criação de obras de arte, pois este monumento intervém dentro do coração dos nossos interlocutores, cocriadores, para fazer despertar um novo sentimento-realidade

Pela estrada: uma reflexão sobre margens e cartas de amor ao Rio Doce
Imagens da obra Monumentos de Amor ao Rio Doce. Piatan Lube, 2018-2020.

Lube, definitivamente, não é um escultor. É um artista. Um ser coletivo resultante da mediação possível estabelecida pelo artista, a cultura e o ambiente, dos quais os fenômenos sensíveis ligados à obra parecem ser acionados.  O compartilhamento de signos, culturalmente estabelecidos, possibilita que   a arte pública, em Lube, tenha uma plenitude existencial.

Pela estrada: uma reflexão sobre margens e cartas de amor ao Rio Doce
Cartas de amor ao Rio Doce coletadas em residência artística nas comunidades ribeirinhas ao rio doce, no ES, por Piatan Lube, 2018/2020

Os documentos do processo de Monumentos ao Rio Doce permitem verificar a ativação de práticas de desapropriação do conceito tradicional de  autoria,  permitindo, ainda, o compartilhamento de um destino poético da  obra com a paisagem e  com  a  cultura,  mediando  memórias  em  ato.   Uma poética baseada em uma estratégia de mediação memorial, evidenciada nas trocas culturais e ambientais aqui expressos nessas imagens do processo da obra.

A obra de Lube, não tem só um autor, ele tem coautores, pessoas anônimas que habitam a cidade, habitam as margens do rio Doce. Pessoas que parece estar constituindo estratégias se resgate do Rio Doce – não exatamente de suas águas (pois isto lhes foge à capacidade), mas pela redesenham das práticas culturais que impregnam traços culturais  e  ambientais. Juntos, Lube e as comunidades ribeirinhas, redefiniram memórias compartilhadas como paisagem, como vida e como arte, sintetizadas em um trabalho público, coletivo e em processo.

Que mais obras como essa de Lube nos ajudem a recuperar não apenas o valor ambiental do rio doce, mas seu valor cultural, como uma artéria que atravessa nosso estado e desenha nossas histórias. Que nossas futuras viagens por essas margens sejam repletas novamente de vida de um rio que, embora ainda doente, se recupera, evidenciando que a natureza é mais forte que nossas imprudências humanas.

https://www.ufes.br/conteudo/ufes-sedia-simposio-nacional-sobre-relacao-entre-paisagens-ribeirinhas-arte-e-arquitetura

José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

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