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21 de janeiro de 2025
terça-feira, 21 de janeiro de 2025
José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.
A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade de cada um deles e não reflete a posição de ES Hoje

INQUIETUDE DOMADA: entre o céu e a terra

INQUIETUDE DOMADA: entre o céu e a terra

Estou chegando na reta final dessa minha estada em Portugal. Regularmente, tenho me colocado na missão de discutir a arte e a cultura capixaba e tenho buscado manter essa meta estando desse lado do mundo. Mesmo quando falei de alguma mostra aqui em terras portuguesas, sempre me dirigi aos reflexos ou chamamentos disto com a produção capixaba. Em alguns casos, tenho falado de artistas capixabas que estão, por um motivo ou outro, atuando em terras lusitanas.

Hoje, fui novamente tomado pelo admirável e decidi escrever sobre um artista português que já havia me atravessado em outro momento em que cá estive, por ocasião do evento que me trouxe a Portugal: o CSO – Criadores sobre outras Obras, realizado pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Minha primeira incursão lusitana nesse evento foi em 2012. Tinha interesse em conhecer o país e ver se era aqui mesmo o melhor local para eu fazer meu pós-doutoramento. Queria conhecer o país, a universidade, um possível supervisor do meu projeto futuro. Enfim, vim procurar algo que fosse bom para mim e minha família, pois seriam doze meses, pouco tempo para que eles aprendessem uma língua diferente, e muito tempo para ficar sem falar a língua local. Portugal parecia ser algo que tornava viável para todos; mas, precisava conhecer primeiro e ver todas as possibilidades. E isto me trouxe aqui.

Desde então, 2012, e em especial entre 2015 e 2016, fui me aproximando do local e das pessoas. Mas, algumas imagens ficaram fortes na minha cabeça desde a primeira vez – pois para nos adaptarmos a novos habitats, tentamos encontrar similitudes com o nosso ambiente usual. A estrutura da FBAUL é muito diferente da nossa no Centro de Artes, já dada pela temporalidade da escola (início do século XIX) e pelo prédio sede (1218 – Convento de São Francisco). Embora o edifício atual da FBAUL seja o resultado de muitas reformas, em especial depois do terremoto de 1755 que quase destruiu toda a cidade, o edifício tem as marcas de sua história e de sua interface com a Lisboa que conhecemos hoje… uma escola que está sentada sobre séculos de tradição. O Centro de Artes da UFES, em Vitória, tem uma história bem mais recente, sendo que formalmente nasce como ideia no ano de 1910, a primeira iniciativa, com a criação do Instituto de Belas Artes – outra longa história que merece um texto específico sobre isto. Se torna efetivamente uma escola superior de ensino da arte na segunda metade do século XX.

Mas, para além da estrutura física da FBAUL, naquele ano de 2012, muitas coisas e pessoas me chamaram de algum modo a atenção. Mas.  Um professor em especial parecia familiar exatamente pela similitude com um dos nossos professores na UFES. Um professor de pintura, de estatura alongada, extremamente bem vestido, com uma barba feita e de uma elegância e leveza nos movimentos e na fala que me remeteram de imediato à figura do nosso professor e artista Atílio Colnago. João Paulo Queiroz era o então idealizador e coordenador do Criadores Sobre Outras Obras (CSO). Aquele professor, com toda sua altura, movia-se e falava como um monge. Silencioso e entregue com dedicação a um dos mais interessantes eventos de que eu já tinha participado. Nos anos que se seguiram, fui conhecendo melhor esse artista e professor.

INQUIETUDE DOMADA: entre o céu e a terra
Processo da exposição Pintura na Terra. João Paulo Queiroz. Fonte: FBAUL

Finalmente, fui conhecendo partes do trabalho do João Paulo ao longo das vezes que retornei ou residi em Lisboa. O que me tomou de assalto na obra deste artista é a dimensão, ou a monumentalidade do seu trabalho. Lembro que um professor meu na graduação disse que a monumentalidade de uma obra não está no seu tamanho. Esse era o caso das obras que conheci: cada pequena imagem era um tempo capturado. O fragmento de um olhar atento e inquieto que queria não domar a natureza, mas sim ser capaz de tomá-la para si em momentos específicos de sua percepção dela. Como instantâneos de um tempo que se esvai entre os dedos.

Ele mesmo diz: “[…] apresento os trabalhos feitos no ano de 2017: são 106 pequenas paisagens, em conjuntos de oito pinturas em cada dia, em que em cada um me debrucei sobre um conjunto de árvores em particular, começando desde manhã, e seguindo sem parar até ao escurecer.” Com esta fala, fica evidente que seu trabalho é uma entrega de si. Cada peça é como se ele fosse capaz de reter o tempo, mas apenas parte dele. Como se pudesse registrar a inevitável passagem do tempo sobre si e sobre as coisas do mundo.

Eram pinturas. Pastel de óleo. Cada uma das mais de cem peças…

Vou tomar aqui algumas palavras de outro artista e professor da FBAUL, Ilídio Salteiro, quando de uma mostra em Cartaz no Museu Militar, em Lisboa no ano de 2017; ao se referir à primeira parte das obras de João Paulo Queiroz, diz ser constituída dessas pinturas,

[…] nas quais terras, verdes e azuis fazem sobressair a Árvore e a Luz.
Verifica-se neste processo uma incessante procura de algo, pela
observação constante e atenta dos quase impercetíveis cambiantes
que se testemunham de pintura em pintura, de acordo com os
enquadramentos do olhar e as oscilações da luminosidade
que propiciam o sol com a sua inclinação em relação ao horizonte e o vento
empurrando as nuvens. Nesse território, como se fosse o lugar de um
eixo do mundo, o olhar do artista observa e regista continuada e
repetidamente uma natureza protagonizada ─ em primeiro plano ─ por
azinheiras, naturais, puras, ingénuas, disponíveis, fortes, resistentes e capazes.

Ilídio aponta que o artista observa e regista; e o faz de modo repetido. Queiroz pinta o mesmo e no mesmo local, exaustivamente,

Ano após ano, trabalhando no terreno, olhando a paisagem, as
árvores. Em cada ano fiz uma série de cerca de 50 a 100 trabalhos,
pinturas a pastel de óleo. Durante este tempo, envelheci
um pouco, assim como as árvores e as pedras que são já minhas conhecidas. No
topo da folha, assinalei, como costumo fazer, a data do dia
em que faço o trabalho, em três grupos de algarismos, que significam o dia, o mês,
e o ano. Para saber qual a ordem com que fiz os trabalhos em cada dia,
distingo-os com a letra “a”, “b”, “c”, “d” e assim por diante
.

Essa rotina criativa acompanha o projeto poético desse artista que me toma pelo afeto e pela envergadura de sua obra. Seu processo meticuloso era evidente nessa série que conheci inicialmente, todas de paisagens tomadas de Valinhos (em Fátima). Mas, na ocasião, como ele coordenava o CSO – e eu bem sei o que é coordenar um evento daquela magnitude -, pouco tínhamos de tempo para conversar.

Essa semana, na metade final de minha estada em Lisboa, em um jantar em sua casa, pude não apenas conversar mais, mas falar especificamente sobre seu trabalho. Enquanto olhávamos parte de uma nova série que será exibida no Brasil em 2025 – e que pretendo levar para Vitória também -, um amigo comentou sobe a calma que tinha na paisagem em cada pequeno trabalho de João Paulo. De imediato, eu disse: tem é uma inquietude imensa. O João e todos me olharam. Me senti na obrigação de explicar o que era a evidência dessa inquietude, que eu subscrevi a ele como uma tendência  domada.

A inquietude domada

INQUIETUDE DOMADA: entre o céu e a terra

Essa sequência de imagens para mim são a evidência da inquietude que paira como uma entidade oculta naquele homem que me encantou em 2012 pela sua serenidade e mansidão de fala e gestos. O João Paulo criador é de uma inquietude interna, qual um vulcão a espera de erupção. Mas, na sua mente e corpo encontraram, no seu processo criativo, modos de domar essa inquietação. Não de apagar essa chama que lhe move a criação. Mas, encontrou modos de controlar essa energia vital em sua rotina de trabalho, na sua busca pela captura incessante do passar do tempo sobre as coisas e sobre si, na sua capacidade de conter o que lhe escorre como se fosse a tinta da aquarela que imediatamente fixa-se no papel e não mais podemos retirá-la. É implacável o tempo. João não pode contê-lo… apenas pode lhe capturar momentos. Instantâneos inúmeros de uma temporalidade volátil. Docemente presas na superfície do papel. A série, como a  série das árvores de Fátima, ao serem colocadas na sequência de sua captura, revelam o tempo em movimento. Ao mesmo tempo em que tenta fundir a mão do artista com a superfície da obra.

INQUIETUDE DOMADA: entre o céu e a terra

O ato preciso de sua captura, na pintura de Queiroz, tenta apagar as marcas de seu gesto pictórico – como se cada imagem gerada fosse pela própria natureza, não pelas mãos do artista, mas através dele. Mas, é a natureza do processo criativo desse artista que parece ter uma intencionalidade que busca aproximar-se da própria natureza. Como se cada uma das imagens, no conjunto, pudesse fazer o tempo passar novamente diante dos olhos de quem as vê. Ele tende a deixar sua presença como criador tão suave como sua presença física nos espaços que ocupa. O silêncio do seu gesto é facilitado pelo pastel de óleo que, com outro gesto da mão, faz desaparecer as marcas do movimento que o cria. Sua mão parece ceder espaço para a natureza. Sua forma fica entre o céu e a terra.

Quem observa a obra desse artista talvez não imagine o vulcão em erupção que lhe toma o gesto criador. Ele observa, captura incessantemente (mais de cem vezes cada série), como que se tentando deter o tempo implacável que o consome. Que o exaure ao fim de cada dia. Produz consumindo sua energia psicotérmica (numa analogia com a geotérmica dos vulcões) para evitar que exploda. Explode-se em suas obras com o frescor e a vitalidade dos campos e vinhas ao pé das terras férteis ao redor de vulcões adormecidos.

Todo esse movimento e turbilhão interno de João Paulo Queiroz parece que está a ser exibido com a calmaria de mares navegáveis, materializados em pequenas e seriadas capturas de seu entorno. Mas, se uma tempestade interna o consome, atrevo-me a afirmar que seu único modo de lidar com essa energia é colocar-se como escravo de seu processo criativo, como um capataz de si mesmo. Senhor e escravo de si.

Na calmaria rítmica dessas marés que se deitam sobre a areia da praia, está um artista que se coloca discretamente naquelas ondas que se quebram – enquanto caem e dobram-se sobre si mesmas, no turbilhão efervescente que faz a água parecer espuma. Bolhas repletas de ar que acionam sua mente como um guerreiro silencioso que se dobra diante da imaterialidade do tempo. Apenas capturado no instante em que passa diante dos olhos.

INQUIETUDE DOMADA: entre o céu e a terra

João Paulo Queiroz parece tomar para si a capacidade de repetir na pintura o tempo capturado do cinema. Mas, ele faz movimento na percepção dos que acionam sua sensibilidade por meio da sua obra. A inquietude desse artista está expressa em sua capacidade de parecer sereno em cada uma de seus fragmentos de tempo e espaço, exaustivamente tomados por centenas de imagens de um tempo que se esvai. Paisagens cambiantes.

Qual onda, que se dobra sobre si, ele extravasa e doma toda sua energia interna que lhe atormenta, para existir da forma que se compreende: como artista.

Serviço:

Sobre João Paulo Queiroz: ver informações adicionais sobre este artista aqui
Sobre a Faculdade de Belas artes de Lisboa

Revisão: Giuliano de Miranda

José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

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