Na expectativa de seguir escrevendo sobre o tema da mulher no ecossistema estético capixaba, acordei hoje tomado pela imagem dessa obra de Joana D’Arc pela qual passo todos os dias em direção ao café. A ingenuidade parece prevalecer tanto na perspectiva quase infantil, quanto na inventividade surrealista revelada em um céu tomado da simultaneidade de todos os astros; todos regidos por Saturno, sobre montanhas sinuosas abraçadas por um celeste fundo que se espelha no lago circundado por margaridas de cinco pontas, como os cinco cumes que sustentam o firmamento.
A obra fala do nascimento da humanidade. Da primeira mulher fadada ao pecado e à culpa, esta lhe atribuída pelo seu papel social, previamente desenhado. Joana D’Arc, na ingenuidade de sua pintura primitivista (para usar um termo do circuito das artes), os representa. Segundo a Enciclopédia do ItaúCultural, o que chamamos de arte primitiva, ou naif, é usado para “tentar descrever modos expressivos autênticos, originários da subjetividade e da imaginação criadora de pessoas estranhas à tradição e ao sistema artístico”.
A imaginação de Joana representa Eva instantes após o pecado original, escondida já pela folha da parreira, tomada em sua mão o fruto proibido, sob o encanto do Saturno/Sol. É desse lugar que chamo a atenção nesse momento. Adão e Eva Místicos (2002) em seu Sol-Saturno, se mostram a mercê do senhor do tempo, o Chronos, lugar em que todos os medos afloram.
Coincidentemente, o Saturno/Sol de Joana D’Arc (na casa 5) é o quinto planeta no céu da artista; a casa 5 é o setor da identidade. Ser aquilo que sou; saber o que somos para não comprometer nossas escolhas ao longo do reino de Chronos. A humanidade foi naquele momento condenada a seu destino falho e incompleto. Não por menos, parece que nessa pintura Joana D’Arc, em seus não enquadramentos na normalidade hegemônica, reforça seus próprios medos e sua identidade. Sua jornada. De artista e, sobretudo, de mulher.
Esta reflexão sobre essa pintura me lembrou o quanto o desenrolar do chamado “desenvolvimento” da sociedade ocidental foi sendo desenhado sob premissas da submissão do feminino. Feita da costela para ser menos. Mas, versa em documentos que a primeira mulher foi criada como o homem; feita à imagem e semelhança do Criador. Feita do pó da terra, Lilith acabou banida do Paraiso por não se subordinar a ser submissa. Não me cabe discutir o aspecto metafísico que envolve esta questão, mas, sim o princípio de que, na origem simbólica da humanidade, já se opera um conflito entre a mulher que não se subjuga e a que é feita para ser submissa – mas, mesmo como tal, submetida aos caprichos masculinos, sobre si cai a responsabilidade de todos os pecados da humanidade. Para a eternidade ocidental. O pecado original. O futuro do ocidente se edificou sobre o corpo submisso, feminino e culpado.
A esta breve reflexão sobre mulheres à parte da formação acadêmica, somam-se muitas outras, mas destaco aqui, especialmente, Nice Avanza. Nice Avanza, circunscrita num tempo e estado geográfico marcado pelo forte domínio patriarcal e pelo determinismo do feminino social, a artista mulher e negra se fez ouvir por meio de um trabalho rico e de forte valor culturalista, ao falar da cultura do cacau no centro-norte capixaba. Enfrentou embates em casa para seguir essa função fora de suas atividades domésticas.
O trabalho de Nice Avanza nasceu sem escola ou orientação acadêmica, mas ocupou o sistema das artes, contrariando seu destino predeterminado. Nice declarou, em um depoimento apresentado em um documentário da TVE, em 1999:
“[…] E então eu pintei uma baiana sentada com um tabuleiro de acarajé. Quando olhei […] achei lindo o meu quadro […] levei quase um mês para pintar aquilo tudo. Trouxe esse quadro para o bar e pus no nosso escritório. Quando o meu marido chegou, olhou aquilo e falou:
Uai! [Leu Nice assinado]. Você está pintando?
Eu tô pintando!
Este homem ficou tão bravo e rasgou a minha tela todinha […] chorei e fiquei muito zangada”.
Nice não parou. Seguiu pintando e desafiando seu destino.
Joana D’Arc e Nice Avanza, pintoras de origem popular e distantes da academia, são dessas mulheres em solo capixaba que redesenham seu destino. Elas seguem a esteira de outras fortes mulheres, artistas e poetisas capixabas. Mulheres que se fizeram e fazem artistas apesar da academia e à parte da academia.
São mulheres que não se dobraram ao poder masculino e que fazem parte da história da arte e da cultura capixaba. Como Lilith, as várias outras Nices e Joanas, não se subjugam a dobrar-se sob o poder da academia e, menos ainda, do masculino.