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4 de maio de 2024
sábado, 4 de maio de 2024
Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

Insensatez galopante

Sábado passado dois homens trocaram tiros na rua de um bairro apelidado de “nobre” em Vitória porque nos acostumamos a considerar assim lugares onde residem pessoas ditas especiais em razão de sua conta bancária mais rechonchuda. O móvel do crime, sinônimo que damos no direito ao seu “motivo”, teria sido antigo conflito entre ambos envolvendo os cachorros possuíam, especialmente o hábito de um deles passear com o seu, da raça pitbull, sem coleira, focinheira e demais cuidados que o dono de um animal dessa raça deve, obrigatoriamente, observar para manter num ambiente urbano, onde circulam milhares de pessoas, um bicho que pode, com uma mordida, mutilar ou até matar alguém.

Bichos e suas companhias acompanham o ser humano desde tempos imemoriais, mas há substancial diferença, avaliando tão somente o mundo canino, entre um cachorro daquela raça acima referida, conhecido e até desejado pela imagem de besta-fera que muitos de seus donos veem neles, e outro cachorro como um chihuahua ou poodle, não obstante também não ser simpático para muita gente as lambidas e latidos estridentes que dão.

A razoabilidade que se impõe a todo mundo que escolhe viver em sociedade, se falta quase sempre em assuntos como manter um cachorro em casa ou passear com eles pela rua, muito mais necessária é quando o assunto é arma de fogo.

Sou absolutamente contra armas, ainda que enxergue nelas uma espécie de beleza instrumental ou que não critique quem acha que tê-las dentro de suas casas aumenta sua sensação de segurança. Mas foge completamente ao bom-senso uma situação que envolve dois vizinhos, ambos armados, enfrentando uma dessintonia desse tipo à bala. E aqui não importa aspectos jurídicos como legítima defesa ou licença para portar esse tipo de instrumento num prosaico passeio à noite a pretexto de levar seu cachorro para gastar as energias ou fazer suas necessidades.

Quem sai armado de casa para isso ou quem, diante de um entrevero já longevo em sua rua, entra em casa para pegar um revólver, ambos, sem absolutamente nenhuma diferença, estão absolutamente despidos do propósito de resolverem pacífica e racionalmente qualquer problema. Ambos, no caso em questão, concluíram que a solução “morte” era um fator relevante nessa equação perversa que há muito tempo, insanamente, vem permeando nosso cotidiano. Pois um morreu e outro, qualquer que seja o resultado do processo penal que responderá, desde o momento que trocou o cérebro pelo dedo e deixou-se levar por ideias e valores, nefastas e estúpidos, que andam norteando a vida de muitos de nós, teve sua vida profundamente alterada. E para pior.

Lidamos, cada um de nós, de maneira diferente com as consequências de fatos como esses, muitos de nós voltando em pouco tempo à realidade dita normal de nossas vidas, e outros jamais conseguindo tornar ao prumo de equilíbrio. Isso decorre da diversidade imensa que existe entre nossas essências. Entretanto, não somos seres isolados e independentes como ostras que, mesmo existindo junto a milhares de outras, fecham-se em suas conchas pouco importando se o indivíduo ao lado cresceu ou morreu.

Nossas casas e as de nossos vizinhos, exuberantes ou simples, nossas ruas, pavimentadas ou esburacadas, abrigam outras milhares de pessoas que pagam seus boletos, desejam ver filhos e netos crescendo, criam gatos, cachorros e papagaios, ou não, também têm medo, insegurança, projetos e sonhos, e nossos atos ou omissões os afetam, o mesmo se podendo dizer em relação às nossas concepções de mundo, princípios e valores, porque são eles que balizam nossas ações.

Achar que é normal alguém sair à rua armado para passear com um cachorro ou pensar o mesmo sobre o ato de quem entra em casa para buscar uma arma que resolverá um bate-bocas, um xingamento ou uma divergência de opiniões é sinal gritante de que a cultura da violência já se assentou como metástase em nossa sociedade. Surpreender-se com um fato como o que motivou o presente texto, quando ele ocorre em ambientes mais sofisticados ou economicamente mais favorecidos, e fechar os olhos para disparos e suas consequências quando se dão em um bairro menos favorecido ou miserável, é outro sinal de que a doença já nos afetou profundamente.

Justificar esses últimos, então, com termos como “danos colaterais” ou “consequências naturais” daquele ambiente, sua vizinhança ou de suposta opção dos envolvidos com o mundo do crime, aí já ingressamos no campo da perversidade e da desonestidade intelectual. Avaliando objetivamente gráficos e estatísticas sobre assassinatos no mundo, encontramos dados estarrecedores sobre o Brasil.

Estamos juntos, entre os países nos quais mais homicídios por armas de fogo ocorrem, com Nigéria, Honduras, Uganda e Etiópia. Alguns argumentam que isso é fruto da pobreza, mas países como os Estados Unidos e a Alemanha, bastante parelhos no que toca à renda per capita, observam índices bastante distintos, ainda que ambos muito menores que os nossos, nesse campo, com os americanos matando por ano o dobro dos alemães.

População também não é fator confiável para explicar essa desigualdade, já que na Índia vivem cerca de oito vezes mais pessoas que aqui, e seus números são muito menores que os nossos, chegando à casa dos 70% à menor para eles. A diferença está na cultura que nos permitimos desenvolver, na insensibilidade, no menoscabo à vida do outro, no debate apequenado e intelectualmente miserável que se tem no Brasil sobre esses temas.

Não sou especialista em segurança pública, por falta de dedicação maior ao estudo técnico de suas variáveis, números e ciência, mas a mim me parece que naqueles que entendem que uma arma, de fogo ou não, é variável considerável para resolver problema de cachorro sem focinheira, frustração pela derrota do time de coração, xingamento no trânsito, cantada no carnaval ou cheque sem fundos, estão as raízes maiores da violência que nos afeta a todos, indistintamente, direta ou indiretamente.

Nossa sociedade vive, hoje, numa espécie de “roleta-russa” e nós, sempre imaginando que nos livraremos do disparo fatal que atingirá alguém muito distante, de preferência no outro lado do planeta, colocando, permitindo ou fazendo pouco caso de quem, por qualquer razão, defenda que se acrescente cada dia mais munições no tambor dessa arma, até que um dia ela dispara na nossa cabeça, ou de algum de nossos colaterais. Aí, por mais ou menos nobre que seja o bairro, qualquer que seja a ideologia da vítima, independente de qual seja seu candidato ou seu saldo bancário, o endereço será o mesmo: sete palmos abaixo de qualquer tese, discurso ou convicção.

Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

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