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4 de maio de 2024
sábado, 4 de maio de 2024
Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

Hipérboles, redicionismos, óticas e éticas

Dia desses o Presidente Lula apareceu numa entrevista respondendo uma pergunta sobre a mais recente tragédia humana ocorrente no chamado Oriente Médio. Ao registrar seu horror pela carnificina iniciada pelo grupo terrorista Hammas e, agora, multiplicada pelo governo de Israel, referiu-se a fato histórico havido entre 1939 e 1945, na Europa e em parte do território da antiga União Soviética: o morticínio sistemático, e em escala industrial, de grupos étnicos, principalmente judeus, prisioneiros, inimigos do regime nazista, soldados e quem mais estivesse naqueles lugar e hora errados, bem como toda a sorte de barbaridades, deslocamentos populacionais, fome induzida, negação de socorro, destruição de casas e cidades inteiras, trabalho escravo e horrores tais que muita gente de boa-fé, ainda hoje acredita que esses crimes ficaram naqueles tempos, como se envolvidos numa espécie de resina, ou congelados, para que a humanidade, nos tempos seguintes, jamais permitisse sua repetição.

É da natureza humana rotularmos e nos apropriarmos de experiências, principalmente as dolorosas, quando delas somos vítimas, tratando-as como uma espécie de cicatriz ou diploma exclusivos, desautorizando qualquer um de usá-los, ainda que para sinalizar exemplo do mal em estado puro, porque alguns de nós nos sentimos menoscabados em nossa memória, numa estranha conta de dividir cujo resultado não se traduz em solidariedade, mas em aparente desprezo de nossas dores.

Antes de qualquer coisa, registro que este texto não tem a pretensão ou objetivo de explicar, justificar, criticar ou de forma alguma julgar a fala do Presidente, muito embora a mim me pareça que exasperar-se, por razões históricas, ideológicas ou até proporcionais, com uma fala sobre horrores, a pretexto de denunciar sua prática, soa deveras insólito quando se coloca essa fala de um lado da balança, e o fato grotesco e seus efeitos, de outro.

Em pequena medida de comparação, é como alguém indo a uma delegacia comunicar a ação de um grupo de extermínio e o delegado repreendê-lo porque vestido de maneira incompatível com o ambiente. Mas cada um com sua escala de valores.

Comparar as coisas é ato de inteligência. Para alguém dizer que tal coisa é bonita ou feia, útil ou inútil, deve antes escolher algo que se encaixe como paradigma daquilo que está a avaliar. Sim, porque se “emprestar” a própria esposa para esquentar a cama de um visitante repugna a um homem que mora numa cidade grande brasileira, para um esquimó é tradição. Se cobrir o corpo, dos tornozelos ao pescoço, com tatuagens tribais é horroroso para uma freira do interior da Polônia, no Tahiti é sinal de realeza, de virtude.

Tragédias são tragédias, independente do número de vítimas que produzem, quando vistas sob a ótica dessas mesmas vítimas, familiares e amigos. Ou alguém em sã-consciência pode cobrar de uma mãe luto menos sentido porque seu filho, caído nas valas do crime, morreu num confronto com a polícia e, não, numa fila de hospital, sem atendimento médico?

Qual a diferença, para outra mulher como essa, se sua família foi exterminada em uma câmara de gás ou por uma bomba jogada por um exército sobre um hospital, a pretexto de matar terroristas alojados no seu subsolo?

Qual a diferença que existe, para um pai, ver seus entes queridos morrendo de fome em um gueto judeu, ou igualmente sucumbidos por que impedidos de sair de um gueto palestino?

Há alguma virtude ou atenuante atribuível ao autor de um crime bárbaro porque perpetrado contra mil pessoas ao invés de um milhão delas?

Pois bem, a hipérbole é uma figura de linguagem que se caracteriza pela ênfase no exagero, como alguém com frio que se diz “congelando”. É evidente que, se aquilo fosse real, estaria ele correndo em busca de um abrigo, e, não, reclamando de um incômodo que pode ser resolvido com um casaco mais bem forrado. Assim como alguém que posta para o ser amado que seu amor é do tamanho do universo. Muito embora deveras exagerado, a hipérbole não lhe tira o brilho da declaração.

O reducionismo, ao contrário da figura de linguagem acima, não é recurso estético ou retórico, mas operação quase sempre usada por quem quer minorar alguma coisa muito ruim feita por si ou por alguém que admira. É comumente visto em situações nas quais a pessoa vê-se flagrada em atitude reprovável, às vezes até criminosa, e se sai com um “e daí?”, um “todo mundo faz isso” ou, pior que tudo, “isso é o que você pensa, já que eu acho supernormal”.

Não é caso de excesso, mas de falta, ou falha: de caráter. Grande parte das avaliações e julgamentos errados que fazemos ao longo de nossas vidas não decorre de equívocos que cometemos porque enxergamos a coisa por uma ótica distinta, mas porque insistimos em nos valer de conceitos éticos os quais sabemos errados, mas neles insistimos porque nos julgamos capazes de medir as dores alheias, compará-las aos nossos próprios machucados, e classificá-las numa espécie de tabela de valores que que tem seu ápice no nosso próprio umbigo.

Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

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