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19 de maio de 2024
domingo, 19 de maio de 2024
José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

De montanhas, mães e outras forças primordiais na arte pública capixaba

De montanhas, mães e outras forças primordiais na arte pública capixaba

Tenho tentado escrever essa coluna movido tanto pela minha paixão por estudar a cultura e a arte capixabas, quanto pelo simbolismo de algumas datas no nosso calendário cotidiano. Esse gesto é como criar percursos afetivos de uma escritura que tenta sair pelo portão de casa, como todos os dias, mas olhando para o que me envolve no percurso, ver os entre-lugares (aqueles lugares silenciosos que nos habitam e que nunca somos tão atentos a eles). Escrever uma coluna semanal me conduz a um olhar mais atento ao que me cerca.

O sair de casa agora é, antes de tudo, ver para o que não se via. É ver, depois de olhar. Ter a intenção de perceber, mas, claro, seguindo a intuição. Mas, sobretudo é perceber a majestade de levantar os olhos ao cerrar o portão de saída e, antes de pisar na rua, olhar para frente e para cima: o admirável Mestre Álvaro, emoldurado pelos meus olhos, como que pelas vidraças no Aeroporto de Vitória, é uma obra sensível da natureza que abriga em si o mito cultural da ancestralidade afetiva de todas as sociedades. Daquela montanha gigante emana, em certas noites, um pássaro de fogo que une amores impossíveis. Um mito que repousava nessa Mestre, antes mesmo dos portugueses aqui ocuparem e derramarem sua matriz europeia e ofuscarem nossa visão de nós mesmos. Mestre Álvaro é um índice de nossa ancestralidade. A mãe – se a tomo como montanha -, de nossa matriz originária.

Precisamos desse nosso olhar afetivo sobre os fenômenos que nos cercam em nossas cidades. E aprender a ver depois de olhar. Ter a intencionalidade do admirável. É com esse olhar do admirável pierceano que revi os monumentos capixabas nesse momento específico da semana do dia das mães. Alias, ter a minha com 90 anos me faz olhar a fortaleza desse ícone da maternidade, da geração e da continuidade. Não é a data comercial que me move, mas prestar, ao meu modo, um certo agradecimento a quem me fez ser o que sou; um amante da vida. Assim, uma breve jornada pelos monumentos capixabas pode nos dar uma visão de como, mesmo sem a intencionalidade consciente, a maioria desses artistas capturou uma dimensão dessa maternidade ancestral.

Mãe nos monumentos capixabas

Apesar de o estado ter pouco representação feminina em seus monumentos, e dentre estas um número menor ainda nos leva à figura materna, é possível identificar aspectos ou dimensões da maternidade, ao longo desses objetos memoriais que falam às gerações futuras aquilo que precisamos relembrar. Aliás, esse é o papel dos monumentos. Escolhi, dentro deste restrito leque de possibilidades, algumas imagens que considero icônicas para abordar esse tema, buscando de certo modo, traçar um perfil que fale também um pouco dos modos de representação dessa figura feminina e também do processo de formação étnico-racial do povo capixaba.

O Monumento à Mãe, escultura de Maurício Salgueiro (1971-1974), na Praça Costa Pereira, em Vitória, representa a maternidade em si; uma obra abstrata que traz uma imagem simbólica ao processo biológico de gestação. O papel biológico feminino e a reprodução são as forças motrizes da obra.  Nessa esteira da mãe protetora, e sem conflitos aparentes com seu papel social, estão o Monumento ao Imigrante, em Santa Maria do Jetibá (2009), de G. Chaves Rodrigues; e o monumento em Homenagem ao Imigrante Italiano (1954), de Carlo Crepaz. Ambos retratam a maternidade com imagem da mãe cuidadora, que vela pelos filhos enquanto os seus maridos labutam – aliás um papel social desenhado para as mães na cultura ocidental, mesmo quando trabalhando, seguem cuidando de seus filhos, como na escultura em homenagem às Lavadeiras em Mucurici.

De montanhas, mães e outras forças primordiais na arte pública capixaba
Vendedora de Água (esquerda), Hippólito Alves, Mucurici, ES. Foto de Julia Almeida. Homenagem aos colonos pomeranos em Santa Maria do Jetibá (direita). Fonte: Acervo do LEEENA

Assim, mesmo em seus outros afazeres, cuidar do filho parece estar impregnado na imagem que culturalmente instituímos às nossas mães. Fardo pesado, do qual elas nunca fogem. Outras muitas representações em praças e logradouros públicos pelo estado estão associados à maternidade cristã na iconografia de Nossa Senhora. A devoção resignada ao cuidado e ao destino do seu filho. Sem dor, e com o sofrimento calado no desígnio divino. A mãe que cuida, alimenta. Espera o tempo, como no monumento de Crepaz, de 1954: embora representando os colonos italianos, a mãe retratada dialoga com as imagens de sacras das Pietas (que ele mesmo esculpiu e que conhecemos no Convento da Penha).

De montanhas, mães e outras forças primordiais na arte pública capixaba
Homenagem ao Colono Italiano (1954), Carlo Crepaz. Fonte: acervo do LEENA

Mas, me chama ainda atenção uma imagem de mulher na escultura pública capixaba, muito falada por ser mais uma obra do grande Crepaz: Dona Domingas. A dor e o sofrimento de um corpo que não pode parar é a evidência de uma mãe que precisa trabalhar para sustentar sua família.

De montanhas, mães e outras forças primordiais na arte pública capixaba
Detalhe lateral da escultura Dona Domingas (1971/1974), Carlo Crepaz. Fonte: acervo do LEENA

Subir o Morro do Pinto com seu corpo senil, carregando fardos de papel ou de roupa… Cuidar de sua família parecer ter sido o fardo que, mesmo não lhe sendo facultado abandonar, ela seguiu bravamente. Apesar das máculas em sua expressão, eternizada no bronze de Crepaz. Talvez seja esta uma das poucas representações femininas de uma mulher, mãe solo de uma família, que traz em seu rosto as marcas da dor desse papel social. Ela cuida, sem ser cuidada. Invergável corpo de mulher negra e pobre que só se dobrou com a idade.

Na esteira dessas representações da maternidade, me lembrei de uma única escultura, no sul do estado que traz a maternidade nativa originária de nossas lendas dos povos indígenas: Mãe-Bá, figura lendária detentora dos saberes ancestrais, cujas cinzas se misturaram ao rio, sendo eternizada em um busto em Marataízes.

De montanhas, mães e outras forças primordiais na arte pública capixaba
Mãe-Bá (1999) Ronaldo Moreira. Foto: Julia Melo – Acervo LEENA

Mãe-Bá me lembrou dessas mães ancestrais. Cujos filhos são gerações inteiras de povos que se edificam sob seus cuidados. Mulheres Como Dona Nini, de Araçatiba, matriarca de uma comunidade tradicional que atravessa os séculos. Ela é como muitas outras que existem e se perpetuam na oralidade. Como muitas outras figuras do congo capixaba. Posso pensa-las como forças ancestrais da natureza, que nos lembram o que somos antes de sermos modelados pela ciência. Dai, automaticamente, me veio à cabeça a toada e os cantos que chamam Madalena, nome que me foi apresentado como música por Martinho da Vila, ainda na minha adolescência no Planalto Central. E que aqui no Espírito Santo entendi sua ancestralidade. 

Mas, quem é a Madalena do Jucu?

Ricardo de Sá, cineasta capixaba, em 2009, produz “Procurando Madalena”, um curta metragem-documentário instigante. Sigo falando aqui não da mãe física materializada em um monumento, mas das mães ancestrais que nos unem na metafísica de nossa existência. Daquelas que atravessaram os séculos por meio da maior força de uma sociedade: sua oralidade, que resiste aos bugs, à falta de energia, às quedas dos servidores, até mesmo a uma possível hecatombe da humanidade.

Responder esta pergunta, nos exige refletir antropologicamente sobre essa localidade: a Barra do Jucu, que era parte da grande fazenda jesuíta de Araçatiba, desenho territorial que ia do limite de Domingos Martins à foz do Rio Uma, em Guarapari;  portanto, seus ocupantes iniciais, além dos indígenas que já aqui habitavam, eram escravos negros e padres jesuítas (em sua grande minoria). Assim, a formação étnica dessa população inicial certamente foi resultado de uma mestiçagem dos povos originários capixabas com os negros escravizados. Não há alguém na Barra do Jucu ancestral que não carregue em si essa matriz de povos tradicionais silenciados pela hegemonia colonialista.

Quem é essa mulher então, que vinda dessa matriz étnica das fazendas de Araçatiba, movia-se entre o rio e o mar? Cantando à beira-rio ao lavar roupas; dançando nas noites enluaradas ao som dos tambores do congo? Rodopiando, gesticulando e sorrindo enquanto desliza em movimentos sob o brilho dourado da Lua no encanto das toadas do congo?

Madalena é mais que uma mulher. É uma força primordial que atravessa horizontes, mares e culturas. A imagem da mãe primordial. É essa força primeira das mulheres de comunidades populares, repletas de si e de seu papel social. É a imagem da matriarca. A que cuida. Que aconselha. Que governa, mesmo que em silêncio, pois sua presença já é poder.

Assim colocado, Madalena tem todos os rostos. E nenhum também. O plural e o singular fundidos em uma única imagem. Mulher. Lider. Congueira. Cantadeira. Rezadeira. Rendeira. Lavadeira. Mãe. Não há uma Madalena, mas várias. MADALENAS. Sua força é sua representação plural. Sua identidade, o amalgama do empoderamento feminino.

Madalena do Jucu, como as outras Madalenas da cultura brasileira, é esse movimento dançante pela noite enluarada. É prata como a luz da Lua. É um fio, como a vida. É sinuosa como a dança que evolui na batida do congo. É forte como toda a ancestralidade que ela traz. Madalena entoa cantos que correm nas águas do Rio Jucu. É leve como a teia criada pelos bilros que enredam a vida, como as fiadeiras do destino na mitologia. É uma mãe que acolhe os seus e persiste como um valor nos tempos.

Madalenas, Domingas , Ninis, e muitas outras mulheres são, sobretudo, resistência com o afeto e a dureza disciplinar de mães. Mães de filhos que ultrapassam sua herança genética. São mães simbólicas da nossa cultura capixaba. 

Serviço:

Foto da capa: Ilustração do Pássaro de Fogo. Fonte: Prefeitura Municipal de Cariacica.

Imagens dos monumentos do Espírito Santo podem ser acessadas em: artepublicacapixaba.com.br

Procurando Madalena (2009): assista o vídeo de Ricardo de Sá:

 

 

José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

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