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9 de maio de 2024
quinta-feira, 9 de maio de 2024
José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

Há reparação cultural de gênero, ou seguimos repetindo uma prática excludente?

Em janeiro deste ano, voltando de São Paulo por um caminho estranho que o Google Maps nos mandou, fui surpreendido com a visão de uma impressionante fazenda nas margens do rio Preto. Na verdade, paramos para almoçar e ao fundo, do outro lado do rio, uma construção imponente. Uma possível evidência dos tempos áureos no café ou da mineração em Minas – pois a fazenda fica do lado mineiro do rio. Ninguém ali deu maiores informações sobre a fazenda. Ela é visualmente grande. Alva com suas inúmeras janelas azuis no alto da colina. Imponente. Fiquei impressionado com o tamanho dela. Imaginando seu cotidiano colonial.

Há reparação cultural de gênero, ou seguimos repetindo uma prática excludente?
Fazenda Santa Clara (séc. XVIII). Maior fazenda escravagista da América Latina, disfarçada de produtora de ouro e café. Santa Rita de Jacutinga (MG). Foto José Cirillo, janeiro de 2024.

Agora, podem estar se perguntando, se eu comentei na coluna anterior que esse mês me dedicaria a falar de mulheres, por razões óbvias, por que trazer essa fazenda?

O motivo é tão assustador como a imponência dessa construção no meio da mata. Santa Clara foi a maior fazenda escravagista da América Latina e, pasmem, a maior produtora de pessoas escravas após a proibição do tráfico negreiro. Produtora? Como assim, podem se perguntar. A suntuosa fazenda tinha um “plantel” (para usar um termo da época) de cerca de 400 mulheres negras, escravizadas e destinadas exclusivamente para a reprodução. Muitas ficaram grávidas antes dos 14 anos e, várias, morriam antes dos 18, vítimas de sucessivas gravidezes e dos maus tratos.

Estávamos no século XVIII, o iluminismo já imperava, os ideais republicanos floresciam, mas mulheres seguiam escravizadas e reduzidas a um papel meramente biológico de reprodução. Vítimas de um sistema colonialista e de uma cultura patriarcal. Soube que mesmo a esposa do proprietário permaneceu décadas em cárcere privado, saindo apenas com a morte de seu marido, mas dando também continuidade a “produção” da fazenda.

Se estávamos no século XVIII, me pergunto o que efetivamente mudou hoje?

E se levo essa reflexão para a arte pública no Espírito Santo, em especial nas obras que homenageiam os chamados atos heroicos, agora eu me pergunto e ao grupo de pesquisadores que trabalham comigo: onde estão as mulheres capixabas de forte expressão histórica e memorial?

A entrevista de Débora Sathler ao programa Ponto de Vista na TVE, me vez relembrar esse triste tratamento que as mulheres, mesmo tidas como heroínas, tem no espaço artístico, cultural e memorial capixaba. Se Maria Ortiz, foi tão relevante para a defesa do território colonial brasileiro, por que alguma homenagem a ela não passa de nome de escadaria ou de logradouro na capital capixaba?

Há reparação cultural de gênero, ou seguimos repetindo uma prática excludente?
Debora Sathler no programa Ponto de Vista, exibido em 6 de fevereiro de 2024. Fala sobre o protagonismo feminino de seis mulheres capixabas.

Por que mulheres como Dona Nini, matriarca do território quilombola de Araçatiba segue sua vida em quase anonimato? Ou nossa capitoa (como assim bravamente a eternizou em um livro, Bernadette Lyra) permanece como uma página pouco visitada da nossa história? Dona Luiza Grimaldi (ou Grinalda) foi a primeira mulher a comandar uma capitania hereditária, mas por ser mulher, lhe foi ordenado retornar a Portugal e passar seus últimos dia em um convento.
Zacimba Gaba, e muitas outras mulheres capixabas seguem sua vida pública memorial sem rostos, sem bustos. Deborah Sathler ainda afirma em sua entrevista que, se fosse nos Estado Unidos da América, já “teria virado filme.”

Poucas mulheres ganharam presença no espaço público capixaba; entre elas, Dona Luiza Grimaldi que ao menos ganhou cara e corpo presentes na casa da Memória em Vila Velha; Dona Domingas segue como o único monumento à mulher negra no estado, uma das poucas mulheres representadas na materialidade da escultura pública. Espaço garantido para a Professora Ernestina Pessoa (Parque Moscoso), ou Virginia Tamanini (em Santa Teresa). No mais, as representações femininas são esposas de colonos em grupos escultóricos no interior do estado (garantindo-lhes não o protagonismo, mas o companheirismo e subserviência do seu papel de esposa). Ou são ainda estereótipos ou alegorias em escadarias ou como musas por trás de homens de vulto…

Como reparar culturalmente esse lugar, a presença e o protagonismo feminino na identidade e na cultura capixaba? Me parece temerário esse futuro, amarrado ainda em práticas que não mudaram muito desde os tempos da Fazenda Santa Clara, ou mesmo antes nos tempos de Dona Luiza. Vejo práticas culturais tradicionalmente femininas no nosso estado serem, por questões mercadológicas e disfarçadas de economia criativa, apagadas em seus fazeres tradicionalmente femininos, não porque há tarefas apenas femininas, mas porque eram afazeres que traziam em si as marcas do matriarcado das comunidades tradicionais que também formam nossa identidade cultural.

Ideologicamente, vivemos mais um dia 8 de março. Mas o que de fato mudou?

José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

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