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4 de maio de 2024
sábado, 4 de maio de 2024
Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

Espião de crachá

Dia desses, ouvindo um amigo contar uma piada que evocava a imagem do título, lembrei uma cena de uma série americana muito popular entre 1965 e 1970, posteriormente reprisada nos anos seguintes, nominada “Agente 86”. Era uma paródia muito bem feita de James Bond, o mundialmente conhecido “Agente 007”, que contava as peripécias de um sujeito chamado “Maxwell Smart”, absolutamente atrapalhado, que fazia absolutamente o oposto do que pregavam os manuais de ação e inteligência de sua polícia.

Não poucas eram às vezes em que o tal agente desmontava, por descuido, as armadilhas infalíveis armadas para prender os maiores criminosos, tropeçando num fio, apertando um botão errado ou deixando escapar um terrorista para salvar um gato em cima do telhado, piadas próprias e divertidas desse tipo de programa.

A tal sequência mostrava o agente em uma reunião ultra secreta, com todos os presentes disfarçados da maneira mais estranha possível, ao contrário dele, que saudava a todos calorosamente dizendo quem era e que agência representava, o que nem seria necessário em razão do vistoso crachá de identificação que ostentava na lapela de seu paletó, com seu nome e código nele impressos e, se celular existisse naqueles tempos, certamente seu número para contato.

Essa lembrança me ocorreu novamente há alguns instantes, quando li a notícia da prisão dos fugitivos do presídio federal de Mossoró (RN), já secundada por muitos comentários, parte grande proveniente dos famosos especialistas de Tik Tok & Cia, criticando qualquer coisa, mas, principalmente, o “pretenso”, “suspeito” e, até, “inconstitucional” (termo muito comum ultimamente) sigilo nas ações e investigações da Polícia Federal e do Ministério da Justiça sobre o episódio e seus desdobramentos, terminando sempre nas indefectíveis teorias da conspiração, todas elas fundadas na conhecida premissa de que seu revelador é uma espécie de oráculo de um grande movimento de libertação ou de conscientização internacional, descido à Terra para salvar a humanidade de algum perigo que apenas aos seus iluminados integrantes foi revelado por Deus ou seu legítimo representante, num grupo de Whattsapp da Diretoria do Paraíso.

Como costuma ocorrer em todo debate travado entre pessoas absolutamente ignorantes sobre seu tema central, o que termina sempre preponderando é exatamente o oposto da realidade, já que dificilmente alguém minimamente “alfabetizado” sobre determinado assunto é capaz de dizer tanta sandice sobre qualquer coisa como costumam fazê-lo aqueles que até alguns instantes antes sequer sabiam da sua existência nesse mundo.

Vimos e vemos isso cada dia mais, com pessoas que nunca leram uma revista em quadrinhos dando aulas sobre constitucionalismo e outros que sequer sabem a diferença entre um cachorro e uma samambaia, deitando falação sobre vacinas, técnicas médicas, e até opinando sobre genética humana. Uma dessas pérolas cotidianas é a discussão sobre o segredo que se impõe em determinadas investigações. Ora, é preciso ser muito infantil, usar um termo mais simpático, para defender que todo e qualquer procedimento de apuração realizado dentro de inquéritos policiais ou processos criminais deva ser abertos ao exame e à curiosidade de quem se disponha a examiná-lo, seja para ocupar seu tempo ocioso, seja para tomar conhecimento de cada detalhe apurado no instante de sua coleta.

Exatamente para evitar que determinados crimes e criminosos escapem às sanções correspondentes que informações, elementos, estratégias e o acesso aos mesmos são mantidos em acesso restrito até que os agentes públicos alcancem seu desiderato ou concluam tratar-se de noticia falsa, conduta atípica ou até lícita, no primeiro caso encaminhando relatório para o Ministério Público formar o que se chama “opinio delicti”, e, nos demais, opinando pelo arquivamento das investigações, sem indiciamento. O que não pode acontecer, nem tampouco ser tolerado sob nenhuma circunstância, é agentes públicos se acumpliciando em extorsões para obterem confissões, delações ou acordos, gente vendendo informação, blindagem, obstrução ou destruição de dados. Isso é crime, e dos mais perversos e danosos à sociedade, exatamente porque praticado por quem tem a função pública de coibi-lo.

É como uma força pública, estadual ou federal, instruída e armada pelo Estado para garantia da lei e da ordem e, sobretudo, do Estado Democrático de Direito, julgar-se legitimada a usar dessas mesmas condições para atentar contra a sua própria essência.

Ouvir de uma pessoa ignorante, por exemplo, que usar areia de solo marinho numa massa de cimento para construir uma casa, ou que determinada mistura de temperos com benzeduras é “tiro-certo” contra uma doença viral é até admissível num contexto social no qual preponderam aqueles que vivem e morrem por suas crenças, mas partindo tais sentenças de um engenheiro ou de um médico formados em instituições superiores minimamente sérias, ou está-se diante de galopante estado demencial, ou de indecorosa e, na maior parte das vezes, delinquente tentativa de lucrar alguma coisa com a boa-fé, ascendência ou respeitabilidade desfrutadas até então.

Opiniões divergentes sobre qualquer fato, ato ou circunstância são absolutamente naturais, adequadas e até saudáveis e necessárias à nossa evolução e ao nosso crescimento pessoal e social, porém quando um dos conferentes sabe exatamente o tamanho e a repercussão do absurdo da tese por si sustentada, essa discussão deixa o campo da retórica e invade o campo do circo, termo aqui usado na sua mais diminuta expressão, saindo de cena a seriedade e entrando nela a palhaçada, igualmente vertida no sentido apequenado.

Pessoas públicas em razão das funções relevantes para as quais foram designadas ou eleitas, ao contrário de populares influencers que parecem se julgar investidos no direito de profetizarem ou sustentarem qualquer tipo de excrescência porque seguidos por milhões de fãs, deveriam, pelo menos nos limites da dignidade que delas se espera no exercício de sua missão ou mandato, perceber e refletir sobre o destino que, mais tempo, menos tempo, os alcança a todos, já que a irreverência, o impacto, a admiração e até o temor que provocam com suas assertivas apaixonadas e caricatas duram apenas o tempo necessário ao surgimento de outra extravagância ou personagem novidadeira, e eles acabam sendo depositados na gaveta escura da mediocridade, quando muito sendo lembrados como referência de alguma coisa muito esquisita que por um momento pareceu ter alguma graça, valor ou serventia, mas que ao cabo ficou apenas como signo de um lamentável projeto mau-enjambrado de ser humano.

Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

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