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4 de maio de 2024
sábado, 4 de maio de 2024
Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

Horrores desprezados e dores diluídas

Há dois anos fomos todos surpreendidos com o início de uma nova guerra, provocada pela invasão russa à Ucrânia. Em par às discussões políticas e ideológicas sempre havidas e às modernas discussões dos especialistas “instantâneos” de redes sociais, o que mais se viu, durante os meses seguintes, foram imagens de pessoas, muitas delas crianças e idosos, destroçadas pelas bombas e projetis, também caravanas de refugiados, suas vidas destruídas, e tantas outras calamidades comuns a esses episódios.

No início de outubro do ano passado, quando muitos já sequer lembravam a situação anterior, outra tragédia se iniciou com o ataque terrorista promovido pelo grupo Hammas a civis israelenses, numa sequência criminosa, sem paralelos naquela região, em tão poucas horas: assassinatos, sequestros, estupros e outras atrocidades que provocaram a reação, naquele instante justa e necessária, do governo de Israel, que foi todavia crescendo e transformando-se no morticínio que se vê ainda lá sendo praticado, enquanto muitos preferem discutir seu correto enquadramento semântico: genocídio, efeito colateral, holocausto ou preço justo que a população civil palestina merece pagar por abrigar esses marginais em seu cubículo existencial?

O fato é que, passadas semanas ou consumidos meses e anos do início de tragédias tais, vai acontecendo uma espécie de sublimação de seus absurdos atos, muitos de nós tornando o foco de nossas preocupações às questões mais corriqueiras, outros abraçando explicações que julgamos mais convenientes para diminuir ou anular as impressões iniciais, ou, ainda, justificar nossos julgamentos à distância sobre os criminosos e vítimas, suas realidades e motivos.

Somos assim enquanto criaturas humanas, exigindo mais ou menos tempo, dependendo de cada um, a purgação do sofrimento e o processo de luto individuais. Tais características e comportamentos, vale destacar, não são privilégios ou exclusividade do animal humano: na natureza, principalmente dentre bichos mais organicamente evoluídos, isso igualmente ocorre, ainda que, suponho, sem atributos como consciência ou escalas de valores morais.

Em filmes e documentários sobre vida selvagem é comum vermos cenas de predadores cercando e atacando suas presas, seja numa savana africana, leões e zebras, seja no meio do oceano, orcas e focas. Quando os “alvos” se dão conta do perigo, principalmente as fêmeas com suas crias novas, muitos deles assumem posição de defesa do indivíduo mais fraco, ou do grupo, às vezes pagando por isso com a própria vida.

Quando suas ações não dão certo e os atacantes saem vitoriosos, esses bichos se afastam do local do abate, sugerindo até certo respeito pela vítima, mas ao cabo de poucas horas ou dias tornam ao mesmo local, onde existe comida e água que garantem sua sobrevivência. Eles sabem, por instinto, que aquele ente de seu grupo, mesmo um filhote seu, já não mais existem, e, para não suportarem destino igual, devem ser mais alertas, sim, porém indispensavelmente alimentados e hidratados. E vida que segue!

No ambiente humano, onde componentes dessa equação de sobrevivência são mais complexos, reagimos às tragédias e a tantos outros episódios que nos afetam de maneira diversa de outras pessoas, sejam elas desconhecidas ou íntimas, já que são distintos os princípios, valores, experiências e conveniências que formam nosso caráter. Alguém que perdeu um ente querido vítima de uma doença e outro que teve semelhante perda em razão de cruel homicídio, enfrentam essas dores de maneira e em tempos diferentes.

Com uma mulher estuprada na escuridão de um terreno baldio e outra destratada pelo chefe diante de colegas de trabalho, isso ocorre da mesma maneira, ninguém podendo cravar qual delas estará em breve levando seu cotidiano com real ou aparente desassombro, e qual carregará consigo esse trauma até seus últimos dias. É evidente que o apoio social, familiar e profissional, e até tratamentos à base de medicamentos ajudam a cicatrização de tantas e diversas feridas no corpo e na alma.

Diversos são os casos de pessoas que reagem fugindo, mudando completamente seus hábitos e relações, buscando conforto em novas crenças e propósitos e, ainda, entregando-se às drogas. A qualquer um de nós, que não somos as vítimas, cabe emprestar-lhes o apoio e o conforto na medida da capacidade e da generosidade de cada um ou, então, o respeitoso e silencioso afastamento, evitando lhes piorar o sofrimento. Todavia, em determinadas situações é cada dia mais comum gente que se dá ao desfrute de imiscuir-se nos sentimentos que não são os seus, confrontando-os com os próprios, como se pudessem aquilatar o que é verdadeiro ou o que é exagerado naquele universo íntimo atormentado. Mais que isso, há algum tempo cunhou-se uma expressão sórdida para coroar essa bizarrice: o “mimimi”.

Atitudes tais são profundamente depreciativas e nefastas, porque menoscabam e aviltam, aumentando ou prolongando a extensão do “machucado” e o seu “tempo de cura”, estendendo seus tentáculos sobre familiares e amigos, por meio da banalização, via piadas, caricaturas ou frases de efeito agregadas como “engraçadinhas ou inteligentes”, mas que revelam apenas a ignorância e a pequenez moral de seu autor ou de quem as “papagaia”.

Somos evolutivamente preparados para diluirmos os efeitos, impressões e consequências dos atos e fatos que nos constrangem ou mutilam, porém os que se consideram capazes e legitimados a julgar a dor alheia, terminam negando ao sofredor dignidade, acumpliciando-se a quem lhe fez mal.

Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

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