A exposição “Baía de Vitória: outras margens possíveis”, instalada no recém-(re)inaugurado Armazém 5, no Porto de Vitória, propõe-se como uma articulação reflexiva entre as dinâmicas históricas, sociais e ambientais que conformam o território da baía. Podemos considerar como curadoria as escolhas de Napê Rocha, Clara Pignaton e Mara Pereira, que formaram o júri da chamada de trabalhos aberta para inscrição de artistas.
A seleção de quinze artistas, mediante chamada pública e convites, indica uma intenção de pluralidade e um interesse pela multiplicidade de linguagens, que vão da pintura à instalação, dos objetos ao audiovisual. No entanto, a materialização desse projeto no espaço expositivo revela uma série de deslizes e inadequações operacionais que comprometem a plena realização de seu potencial discursivo.
É certo que a concepção curatorial demonstra coerência. A escolha de abordar as “outras margens”, entendidas para além do sentido geográfico, como questão social, cultural e memorial, alinha-se a uma tendência contemporânea de revisão crítica das narrativas hegemônicas sobre os espaços urbano e natural.
Para onde aponta essa tendência? O que poderíamos esperar de produções de arte críticas a esse respeito, na atualidade?
As discussões contemporâneas sobre as relações entre urbanidade e natureza evidenciam que a urbanização em zonas ribeirinhas e costeiras gerou vulnerabilidades socioecológicas complexas, resultantes da interação entre processos socioeconômicos e pressões biofísicas. O que já se tratou de uma discussão entre especialistas, hoje, tornou-se assunto público e publicizado. A expansão urbana desordenada, com destaque para países de renda média e baixa, sobrepõe desafios de longa data a problemas emergentes, como a degradação de ecossistemas amortizadores, a exemplo dos manguezais, e a exposição a eventos climáticos extremos.
Essa confluência sobrecarrega a capacidade de gestão municipal e de planejamento, o que aumenta a exposição a riscos como inundações, com assimetrias e vulnerabilidades ampliadas pela inefetividade governamental e pela marginalização de populações pobres. Em ambientes estuarinos, esse fenômeno se manifesta com inundações compostas, quando há a combinação de marés altas, aumento das vazões fluviais, chuvas prolongadas e pouco escoamento. Moradores de Vila Velha conhecem bem esse cenário.
Em resposta a esses desafios, pensamos na necessidade de integração entre a natureza e o desenvolvimento urbano como algo que ultrapasse o sentido corriqueiro de preservação.
Poderíamos falar em reurbanização dessas áreas por meio de múltiplas estratégias, na sinergias entre sensoriamento remoto, modelos de inteligência artificial e análises geoespaciais para monitorar mudanças no uso e cobertura da terra, projetar a expansão urbana futura e simular cenários de risco, ou no fornecimento de subsídios para o planejamento adaptativo. Mas, esse não é o foco deste texto.
Sem prejuízo das discussões sobre vulnerabilidade e infraestrutura verde, a incorporação dos aspectos culturais, históricos e dos modos de vida locais tem sido identificada como um vetor fundamental para a eficácia e a sustentabilidade das intervenções em zonas costeiras urbanas. A abordagem da Paisagem Histórica Urbana, preconizada pela UNESCO, defende que a gestão do desenvolvimento urbano nessas áreas sensíveis deve integrar a conservação de patrimônios tangíveis e intangíveis como recursos dinâmicos para o desenvolvimento sustentável. Tal perspectiva implica reconhecer que o patrimônio cultural, que inclui desde a morfologia urbana até as práticas comunitárias tradicionais, é central para a adaptabilidade das comunidades, particularmente em cidades históricas em que boa parte das áreas urbanas são costeiras e, portanto, enfrentam riscos climáticos crescentes. Nesse contexto, a simples preservação de edifícios ou monumentos isolados é insuficiente, o que exige uma leitura integrada que entenda a paisagem como um sistema vivo, no qual a cultura informa e é informada pela relação com o ambiente natural.
De modo concreto, tal integração funciona através do reconhecimento e da valorização das paisagens culturais como categorias que abrangem desde as paisagens vernáculas (que documentam padrões de assentamento e uso da terra, como agrupamentos baseados na relação com o mar ou zonas agrícolas periurbanas) até as paisagens etnográficas, associadas a grupos contemporâneos que mantêm práticas culturais de longa data, como a pesca ou a gestão tradicional de recursos costeiros. As características não materiais que as populações obtêm dos ecossistemas, como o sentido de lugar, a identidade cultural e a inspiração, são coproduzidos através das interações e práticas humanas no ambiente. Hoje, nós compreendemos que o envolvimento das comunidades e artistas locais no planejamento das relações entre urbanidade e natureza tendem a gerar possibilidades mais adaptadas ao contexto. Logo, os aspetos expressivos, culturais e históricos deixam de ser verniz publicitário para se tornarem componentes operacionais na construção de cidades mais adaptáveis e justas.
Propostas como as de Gabriela Gaia, com “50 hectares: a medida da reparação”, de João Cóser, com “Nunca deixou de ser raízes”, Jéssica Barcellos, com “Buraco”, Yuriê Perazzini, com “Transcurso: talho de barro nas mãos de Nganga”, Carla Desirée, com “Ayê I”, Amaná, com “O chão que eu sou ainda é o mesmo”, assim como “Um dia discursa a outro dia, uma noite revela a outra noite”, de Ana Luzes, apresentam proposições que dialogam diretamente com esse eixo. A obra de Gaia, em específico, estabelece uma relação complexa entre documento histórico (o relatório de Ernst Wagemann) e a subjetividade onírica, de modo a propor uma equivalência espacial simbólica (entre os 50m² da instalação frente aos 50 hectares de terra) para discutir processos de colonização, expropriação e a dívida histórica do estado para com populações indígenas e afrodescendentes. É uma instalação que exige detimento e mediação.

A instalação de Gaia encara questões estruturais da formação de nossa sociedade, responsáveis por boa parte dos conflitos e violências que observamos hoje. “50 hectares: a medida da reparação” nos lembra de que é impraticável pensar o Brasil sem enfrentar o problema da distribuição de terras. A concentração de poder financeiro e a exclusão da população negra pós-abolição é decorrente direta da lei de terras de 1850. O corte étnico-racial da pobreza brasileira jamais se desvinculou dessas ações estatais. Junto a isso, o desequilíbrio na demarcação de terras indígenas é um legado direto do processo de colonização, que confinou os povos indígenas em frações mínimas do seu território original.
A demanda por reparação histórica, central na obra de Gaia, é uma pauta atual e urgente. A materialidade da instalação sustenta sua proposição. Os 161 sacos de café dourados suspensos evocam a riqueza agrícola gerada, enquanto as mudas de café redirecionam a atenção para os seus usos sagrados nas tradições afro-indígenas. Os bancos de madeira, confeccionados por Seu Otto Rodrigues, incorporam a presença do trabalho manual e criam um espaço de memória e de transmissão do conhecimento pela conversa. Assim, a obra articula memórias afetivas e sociais com uma reivindicação política mais ampla.
Já “Nunca deixou de ser raízes” (2025), de João Cóser, opera uma materialização crítica das discussões sobre a simulação ecológica em contextos de perda do mangue como “pele planetária”. A instalação apresenta uma unidade morfológica artificial, uma ilha de mangue suspensa no tempo e no espaço, que, através da iluminação inferior e do uso de troncos reais sobre terra seca, tensiona as memórias de sua Cocal da infância. As linhas de lã vermelha, que se entrelaçam pela terra e troncos, estabelecem um comentário sobre a frágil demarcação entre o orgânico e o construído. A referência a Ailton Krenak é atualizada na proposição de um oásis não como refúgio, mas como artefato. Estamos diante de uma proposta que questiona a capacidade do projeto urbano contemporâneo de recompor, para além da estética, as complexidades ecológicas e as memórias dos territórios apagados. Caso sua localização no espaço expositivo permitisse a percepção mais nítida da ilha de memória suspensa e das silhuetas dos troncos mortos, a tristeza do desparecimento de uma paisagem, assim como a crítica em sua rememoração recortada sobre o piso de concreto saltariam para o primeiro plano.

Algo similar, mas com outros apontamentos, ocorre com as propostas de Jéssica Barcellos, Yuriê Perazzini e Carla Desirée. A terra, os minerais, o trabalho das mãos e as simbologias pedem a concentração que a disposição em agrupamentos não permite. Ainda que a lógica expositiva, em suas subdivisões terra/mineral, fronteiras mar/rio/terra, água e vento, funcione para organizar o conjunto heterogêneo de propostas, essa solução tende a conter os potenciais críticos dos trabalhos.

É precisamente na relação entre as obras e o espaço que se localiza o principal déficit da exposição. O Armazém 5, um galpão portuário histórico, apresenta características arquitetônicas desafiadoras para a montagem: ampla volumetria, significativa incidência de luz natural e correntes de ar, além das estruturas industriais remanescentes de outros usos. A adaptação de um espaço como esse para fins artístico-culturais exige um projeto expográfico tão rigoroso quanto maleável, que contemple o controle de iluminação, a acústica e a circulação do público. Tais cuidados não são evidentes na montagem. A luz externa, difícil de ser filtrada adequadamente, subjuga as composições que dependem de nuances cromáticas ou de projeções, como os trabalhos audiovisuais. Não se trata apenas de pedir pelo tradicional “espaço de respiro”, mas da definição de prioridades.
Uma coisa ou outra. Caso decida-se manter as características do espaço, é necessário permitir que artistas pensem seus trabalhos de acordo com essas especificidades. Tal esforço demanda tempo, liberdade e uma abertura de diálogos que pode exigir profundas modificações em projetos já aprovados.
O corredor de vento, formado pelo túnel de madeira instalado na direção de uma das portas abertas ao mar, talvez tenha sido a escolha mais infeliz. Em dias de ventania, tão típicos de Vitória, a sutileza dos bastidores suspensos de Rick Rodrigues se perde, ao ponto de ser impraticável observar o trabalho. Seus demais objetos instalados, como o inédito “quando morre o rio, nasce [acontece] o nosso encontro”, apertam-se até quase escapar pela quina do túnel. A intensa luz de nossa Cidade Sol também pode fazer desaparecer as delicadas projeções em “Rastro”, de Jaíne Muniz, ainda que os tecidos suspensos, que servem se suporte para as imagens, privilegiem-se de modo inteligente do movimento. Já o quase-altar “Muitas águas”, de Farley José, parece entrincheirado, como se tivesse faltado espaço para instalar o trabalho, o que não é o caso.
De modo geral, a disposição das obras no interior do galpão evidencia problemas de planejamento espacial. Observa-se uma distribuição irregular, com aglomerados de obras em determinadas áreas, o que cria uma sensação de saturação visual, enquanto outras seções do vasto espaço permanecem subutilizadas, com vazios que quebram o ritmo da narrativa expositiva. Essa proximidade excessiva entre propostas distintas impede a necessária individualidade de algumas peças, dificulta a leitura e restringe a experiência do púbico. Duas exceções são a já comentada instalação de Gabriela Gaia, que pode ter escapado da aglomeração pela disparidade material, e as fotografias de Ana Luzes.
Ao transpor sua produção para o Armazém 5, Ana Luzes demonstra como essas imagens sobre fronteiras simbólicas que, tradicionalmente, segregam corpos e narrativas periféricas, são capazes de promover um giro necessário na discussão sobre a vida costeira e ribeirinha. Esse giro, no entanto, não é o típico deslocamento da noção de periferias, mas uma elegante tomada de espaços de legitimação. Instaladas como flâmulas, as imagens impressas em tecido semitransparente dançam como ondas, enquanto observam, do alto, todo o campo já instituído como arte contemporânea. Com o título de “Um dia discursa a outro dia, uma noite revela a outra noite”, essas fotografias apontam para algumas das mais interessantes palavras-chave da mostra: camadas de vida, memórias sociais e afetivas, relações concreta e simbólica mar/terra/vento/corpo, direito à cidade e margens em transformação.

Paradoxalmente, enquanto a montagem física das obras carece de rigor, o projeto de design gráfico e identidade visual, desenvolvido por Amanda Lobos e Luan Jacinto, apresenta-se como um elemento de notável eficiência e criatividade. A comunicação visual consegue sintetizar conceitos e articular de forma coesa a diversidade de linguagens e caminhos do projeto em um sistema gráfico claro e atraente. Esse sucesso, contudo, acentua a disparidade de investimento entre a esfera da comunicação e a da materialidade expositiva. A impressão que se forma é a de que o projeto “Baía de Vitória” priorizou sua face pública e midiática, o que pode incluir a websérie documental e as ações educativas, em detrimento da consolidação da experiência expositiva presencial como fundamental para efetivar os objetivos da proposta.
A apresentação do projeto sugere um empreendimento de grande porte, com orçamento significativo e uma rede de parcerias públicas e privadas. Enquanto o governo do estado do Espírito Santo enfatiza o desejo de inserir Vitória em um circuito global de revitalização de áreas portuárias, tal ambição urbanística e política legítima parece, no caso do Armazen 5, ter escanteado o cuidado necessário com as produções poéticas. Os artistas, especialmente os selecionados por edital, tiveram seus trabalhos aprovados por um júri qualificado, mas a transição do projeto para o espaço físico não lhes ofereceu as condições técnicas ideais para a apresentação de suas proposições. Isso levanta questões sobre a relação entre a retórica de valorização da cultura local e as práticas efetivas de suporte à produção artística.
Em conclusão, “Baía de Vitória: outras margens possíveis” constitui uma iniciativa curatorial relevante e bem fundamentada, que mobiliza um conjunto de artistas capazes de articular questões prementes sobre memória, território e reparação. Obras como as de Gabriela Gaia, João Cóser, Rick Rodrigues e Ana Luzes demonstram uma profundidade de pesquisa e uma sensibilidade artística que merecem um suporte expositivo à altura. Contudo, a implementação da mostra no Armazém 5 falha em resolver problemas fundamentais de ordem prática: o controle ambiental, a lógica de ocupação espacial e a criação de um percurso coerente e respeitoso com as individualidades das obras. O resultado é uma experiência que, apesar de seu potente discurso, é fragilizada por uma montagem que não consegue assegurar as condições mínimas para a plena apreensão de algumas peças. A mostra espelha uma das tensões que ela própria busca criticar: a dificuldade de converter boas intenções e projetos em realidades materiais bem resolvidas e equânimes. O Armazém 5 tem o potencial para se tornar um equipamento cultural vital para a cidade, mas seu sucesso futuro dependerá da capacidade de harmonizar sua ambição arquitetônica e urbanística com um compromisso indispensável com a integridade da obra de arte e da experiência do público.
Revisão: Alana de Oliveira











