Mapas são elementos do campo da representação. Em “Quebra-mapa: dimensões do recomeço”, encontramos uma razoável diversidade de modos de representação, o que é sempre interessante, sob uma perspectiva mais tradicional, pois nos desvia da pergunta sobre uma linha mais consistente para a costura do conjunto. Quando escapamos da escolha de objetos de representação como foco do diálogo entre as propostas, encontramos o refúgio da justificativa generalista. Dizer cartografia, sem a preocupação com o objeto cartografado (territórios de emoções, desejos, identidades, conceitos, ideais políticos, tradições, rituais, crenças, memórias, etc.), é apenas dizer que os trabalhos de arte representam algo, ainda que seja seu próprio processo de feitura.
Essa abordagem questiona a função documental da arte cartográfica. A ênfase recai, então, sobre a natureza autorreferencial do mapeamento, na qual o ato de representar supera o objeto representado. Nesse caso, o processo criativo transforma-se no território e desloca a noção de referencialidade topográfica.
Aberta na OÁ Galeria, “Quebra-mapa: dimensões do recomeço” apresenta trabalhos de quatro artistas contemplados pelo Edital de Convocatória do Museu Vale 2025 (André Magnago, Romário Batista de Souza, Amanda Chabudé e Marta Monteiro), além de três nomes convidados pela curadora, Isabella Baltazar. Dos muitos desafios desse tipo de curadoria, não devemos ignorar as dificuldades de integrar propostas que foram pensadas de modo independente, reunidas por uma avaliação de um júri alheio à mostra. A expansão desse conjunto, com os convites para Rafael Segatto, Carla Osório e Thiago Balbino, certamente, auxilia na organização das ideias.
Assim, a estrutura curatorial de Baltazar opera em duas camadas: seleções e inserções. Essa dupla dinâmica gera tensão entre concepções autônomas e diálogos adaptados. A curadora assume o risco de mediação entre projetos originados em contextos dissociados, na busca por uma coerência narrativa improvável, mas evidentemente possível.
Já que estamos no universo da cartografia: é comum a expectativa de que uma curadoria exponha uma espécie de mapeamento das produções de arte, ainda que dentro de recortes regionais ou temáticos. Isso não me parece justo, ao menos se supomos que mapas são factuais, confiáveis e imóveis; pois não se trata de uma suposição razoável.
Tal expectativa parte de um equívoco epistemológico sobre a cartografia. Mapas são dispositivos de poder que codificam subjetividades, não registros neutros. Mapas, assim como fronteiras, apresentam muito de ficções culturais. Felizmente, a mostra recusa-se a fornecer legendas unívocas para as obras.

Com esse lembrete, a “Cartografia do barro”, de Amanda Chabudé, obra feita a partir de argilas coletadas das falésias da Serra e do Vale do Mulembá, dá corpo às muitas perguntas que podem ser feitas diante desse conjunto. Ao interromper nosso caminho pelo chão da galeria, “Cartografia do barro” nos leva para uma interrogação extensa: como articular identidades, paisagens, memórias, formas não categorizáveis e rituais em representações que nos forneçam orientações, indicações e apontamentos para circularmos por esse mundo?
A instalação de Chabudé opera uma transmutação material: terra torna-se suporte de memória geológica. A instalação bloqueia fisicamente o trânsito e converte o espaço expositivo em zona de interrogatório topográfico. Nesse sentido, a artista propõe que a cartografia exige negociações constantes entre corpo e território, entre passado e presente.
Desses termos, o ritual pode ser um primeiro atalho para pensarmos como circular por linguagens e histórias tão variadas. Marta Monteiro, em “A Rota do Chá”, uma ampla instalação que ocupa a parede de entrada da galeria, parece compreender isso. A palavra ritual pode soar tanto inefável quanto palpável, a depender do que você se lembra quando a escuta e a pronuncia. Podemos pensar nas ações efêmeras, na vivência do tempo presente, no contato com o metafísico (do espírito, pensamento e emoções). Nesse caso, o ritual corre o risco de permanecer abarcado pelo simbólico. Em outra linha, podemos pensar na palavra resto. Rituais deixam restos e isso nos lembra que eles ocorrem em e através de corpos, humanos e não-humanos. Como apresentar os restos de nossas experiências no mundo? Essa é, muitas vezes, a dúvida perseguida por artistas, quando quebram a cabeça para encontrar formas que nunca atingem o ideal. “Cartografia do barro” está lá como corpo que documenta a existência de outros corpos e ações.
Os restos materiais funcionam como testemunhas forenses de práticas rituais. Eles atestam a passagem do tempo sobre corpos orgânicos e inorgânicos. A arte, aqui, assume a tarefa arqueológica de exumar vestígios e converter resíduos em documentos. Essa operação revela a fragilidade dos rituais frente à entropia.
“Ritos e restos” poderia ser o subtítulo de um evidente recorte interno dessa mostra. Nesse recorte, Rafael Segatto, com “Maré de Sizígia (viva)”, “Maré Morta (de Quadratura)” e “Maré de Descanso”, amplia nosso escopo para além do vínculo imediato entre arte e cultura. Em alguma medida, talvez nossas vidas sejam rituais que se desenrolam entre o nascimento e a morte, alguns mais longos do que outros. Quando observamos os fluxos da vida fora da arrogância humana, que faz com que sempre nos consideremos um ente escolhido e especial entre os demais entes, a vida como rito se revela. As inscrições nos cascos de tartarugas marinhas, seu eclodir e descansar nas areias das praias, suas marcas de fluxos oceânicos imemoriais nos lembram que a harmonia e o arranjo da realidade dependem do quanto prestamos atenção.
Segatto desloca o ritual do âmbito antropocêntrico para esferas geológicas e biológicas. Suas marés expõem ciclos cósmicos que independem da consciência humana. As tartarugas marinhas tornam-se arquivistas involuntárias, suas carapaças registram histórias que metacivilizacionais. Os ritos fundamentais, logo, seriam aqueles executados pelo planeta.

Falar de cartografia é falar de incompleto, insuficiência e esforço perceptivo para coletar partes de um todo que apenas adquire unidade na nossa insistência em escrever o mundo para que ele faça sentido. Não existe a realidade monádica de Leibniz, o que pode ser triste, assustador ou instigante. “Ipandé do Mangue”, de Thiago Balbino, nos ajuda nessa aceitação. Fragmentos abandonados, perdidos, descartados, carcomidos, esquecidos, naufragados. A ideia de naufrágio pode nos ser útil para compreender o ressurgimento, assim como a permanência e a finitude dos rituais. Esses são três estágios circulares.
Em alguma medida, Balbino trabalha com a poética do fracasso, com as marcas do naufragar. Seus fragmentos exumados de mangues simbolizam projetos de representação abandonados. O naufrágio nos serve como metáfora do conhecimento interrompido, quando destroços mantêm potencial semântico. Balbino demonstra que a ruína contém mais verdade que os mapas concluídos, pois expõe o caráter provisório de toda representação.
O “Sem título”, de André Magnago, evidencia essa tríade com elegância sintética: o desenho em grafite, a matriz cônica em gesso, o baixo-relevo. A matriz que trilha um caminho sobre si e, logo, sobre o desenho. Tal caminho aponta para o registro, embora não se encerre nele. Outro modo de dizer restos, marcas, impressões.
Observar os conjuntos de Magnago é presenciar a exposição de uma arqueologia do processo criativo. Ele nos lembra de que artistas inventam seus processos, mas, não do zero. As escolhas experimentais e técnicas não são coelhos tirados de uma cartola. Não há geração espontânea, mas consequências de um arcabouço cultural formado a partir da pesquisa e da observação comprometidas. Cada estágio (esboço, molde, relevo) funciona como estratigrafia de uma ideia. A matriz não é instrumento, mas agente que reconfigura o traço inicial. A obra documenta sua própria genealogia e expõe o caráter cumulativo da investigação artística.

Carla Osório, na série “Negros do Espírito Santo”, vai do Vale do Cricaré à Presidente Kennedy, da memória dos escravizados à Puxada do mastro de São Benedito, no preto e branco respeitoso das fotografias que retratam. Retratar nada tem de simples. Junta-se, aqui, a capacidade de apresentar uma condição única, exemplar e identificável, com a integração do indivíduo a um contexto amplo e complexo. Isso torna o retratado em personagem, ou seja, um agente que personifica ideias, vivências e histórias. Eis o que faz com que o retrato de um sujeito seja representativo para uma comunidade. “Dona Cizalpina”, “Capoeira”, “Morro do Zumbi”, “Menino de Boa Esperança”, “Congo mirim”, cada uma das cinco imagens expostas possui tal característica difícil de alcançar com um movimento instantâneo do obturador.
Osório emprega a fotografia como tecnologia de resistência histórica. Seus retratos operam contra o apagamento sistemático de memórias afrodiaspóricas. Cada figura torna-se nodo em uma rede de narrativas silenciadas e demonstra que o registro fotográfico exige negociações éticas entre indivíduo e coletivo, entre visibilidade e instrumentalização.
Por fim, Romário Batista, na série “Mitologias Sustentáveis” (“O Jaguará”, “A Tristeza do Urubu”, “O Pássaro de Fogo” e “A Serpente de Águia Branca”) expõe como as narrativas do imaginário são o que permitem nossas culturas entrelaçarem o cotidiano com algo maior, que sabemos o que é, mesmo sem conseguirmos nomear o todo.

Batista revela o mecanismo cognitivo dos mitos como sistemas de orientação existencial. Suas criaturas híbridas funcionam como bússolas simbólicas para comunidades. O que percebemos é a função pragmática do imaginário: estruturar o caos da experiência em narrativas navegáveis. Essas fabulações cartografam o invisível e oferecem coordenadas para o transcendente e o disperso. Afinal, percebemos a realidade por fragmentos e a ficcionalizamos em mapas por medo de nos perdermos por aí. Por isso afirmamos “nossa cultura” e esperamos que isso seja o suficiente para gerar respeito e reverência.
Revisão e fotografias: Alana de Oliveira