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8 de outubro de 2025
quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Dois marceneiros e suas estranhezas

Sejam bem-vindos a ‘Primas da Arte’, primeira coluna digital cuja finalidade é a crítica da arte no Espírito Santo, do Espírito Santo e para o Espírito Santo. ES Hoje, há algum tempo, numa parceria com estudiosos capixabas, trabalha para valorizar o que se produz no estado. A ideia é, neste espeço, divulgar a produção e os artistas, bem como análises, interpretações e avaliações.

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Até 8 de agosto, a galeria Matias Brotas exibe “Siderações”, exposição conjunta de trabalhos de Francisco Nuk e Hugo Mendes. Com texto curatorial de Flávia Dalla Bernardina, diretora artística da galeria, “Siderações” exibe objetos que mesclam madeira, resina e fibra de vidro, de Mendes, e dois conjuntos de Nuk, basculantes e gavetas de madeira suspensos e fotografias noturnas de janelas iluminadas, acompanhadas de frases que se relacionam de modo ficcional com as imagens.

Dois marceneiros e suas estranhezas

Nem sempre o virtuose da imagem e da matéria reflete as mesmas habilidades no trato com as palavras. O burilado adolescente das frases ficcionais que acompanham as fotografias de Francisco Nuk ressalta a dissonância entre os meios. “Alexandre dormiu de luz acesa. Precisa de companhia”, “Marta sente tesão enquanto assiste séries policiais”, “Caio abriu a báscula de seu quarto para entrar um pouco de ar. Estava desesperado”.

Ocorre que a solidão claustrofóbica de nossa classe média empilhada em condomínios sem circulação de ar não é envergonhada e velada, mas raivosa e ressentida. A era das nuances é passado. Seu vizinho não tem receio de dizer que te odeia. Ele envenena seu cachorro, te persegue pelas ruas com um revólver em uma mão e o celular na outra.

Nada disso, no entanto, desfaz o impacto dos quadrados de luz em fachadas desumanizadas. O amarelo imaterial é o lembrete delicado de que há vida entre as paredes úmidas e o ar viciado de nossas celas metropolitanas. O deslocamento das fotos do centro do enquadramento é fundamental para manter o efeito de um olhar que se ergue das ruas da cidade. Janelas dentro de janelas dentro de janelas.

Viver em cidades atulhadas envolve a aceitação desses recortes. Grudada na parede do seu quarto há outro cômodo, com outra cama e outros íntimos, separados por uma barreira de quarenta centímetros que as janelas denunciam. Olhe pelas janelas do seu apartamento e mergulhe pelas do prédio da frente. Depois da janela, uma pessoa recortada em plano americano. Despois desse recorte, os olhos.

Poucos anos atrás, quantas pessoas puderam passar mais de um ano seguras, observando os habitantes dos outros prédios apenas pelas janelas? Talvez, você conheça a rotina da maioria deles, sabe o que significa o silêncio, os gatos nos parapeitos, a escuridão do começo de noite e a sua ausência. Nem sempre a luz remete à presença. Quando meus vizinhos saem para passear por dias, deixam as luzes da sala e do banheiro acesas, como um engodo para que os assaltantes não invadam o imóvel vazio e fartem-se com seus bibelôs da Shopee.

Por uma daquelas torções perceptivas que objetos bem instalados são capazes de executar, as janelas de madeira de Francisco Nuk, afixadas a centímetros das paredes da galeria, nos dizem mais das dificuldades de relacionar nosso íntimo com a exterioridade inevitável do que suas imagens captadas. O basculante é uma grade-janela. Há pouca diferença entre isso e uma janela enjaulada por grades.

Dois marceneiros e suas estranhezas

As janelas pequenas podem esconder necessidades arquitetônicas simplistas: é preciso espaço de parede para guarda-roupas e armários. Nossos pequenos apartamentos devem acumular e guardar tudo o que temos, tudo o que somos, tudo o que será inventariado quando, depois de anos de esquecimento, um vizinho enxerido se perguntar por que a luz do banheiro do sexto andar jamais se apaga.

Do desespero desse aprisionamento, nas esculturas de Nuk, a luz gera sombras delicadas, frágeis e sutis como os finos encaixes de madeira. É significativo que não haja metal nessas janelas que projetam formas luminosas sobre as paredes da galeria. Trocamos o peso do metal chumbado no concreto pela mobilidade refinada dos veios de madeira.

Esse efeito da suspensão das peças sobre a parede fica mais evidente em suas colunas de gavetas em madeira perolada. Caso estivessem penduradas no centro da sala principal, de modo a eliminar o vazio entre obras que não pedem tanta distância para observação, teríamos um novo jogo de sombras macias, especializadas por levitação.

Se Nuk desloca os recortes do cotidiano, as peças de Hugo Mendes promovem um estranhamento desejante. Seus objetos apresentam evidências físicas e eróticas. A condição erótica, vale ressaltar, se constrói através de outro tipo de recorte: a exclusão do todo, com a promessa de uma completude sempre impedida. Não é por menos que o olhar erótico se aproxima de outro (que, talvez, seja o mesmo): aquele que faz os corpos em pedaços sem rosto, com órgãos em close, manipuláveis e convidativos ao toque (“O Olhar pornô”, de Nuno Cesar Abreu).

Dois marceneiros e suas estranhezasDiferente do olhar que se processa através do registro, que inclui a representação, os objetos de Mendes aproveitam-se das transições entre materiais para deixar impressões quiméricas. Não se trata da mistura de elementos que gere um novo sólido. Nas passagens entre a madeira, a resina, a fibra de vibro e a tinta, percebemos o momento do esforço de uma mescla que nunca se concluirá. São dois, três ou quatro reinos em simbiose monstruosa.

Recordemos que há uma longa tradição de imagens dúbias usadas para referenciar o caminho abominável: pessoas com roupas listradas nos carnavais da Idade Média, rostos divididos entre o riso e choro, El Bosco, as esculturas de cera colorida de Gaetano Zumbo e todo um mundo de horríveis maravilhas surgidas do cruzamento de animais desconhecidos. O ambíguo sempre se ligou ao monstro, à corrupção, ao pecado e, logo, à imperfeição, à mácula, ao incompleto e ao desejo sexual.

O resultado das transições entre a madeira repleta de marcas orgânicas e o brilho colorido artificial do vidro e da resina, nos objetos de Hugo Mendes, emaranham estranhezas que atravessam uma longa história e formam parte de nosso imaginário mais profunda. Desde os monstros marinhos de Ambroise Paré, em “Des monstres et prodiges”, até o camp de Divine e John Waters.

O tipo de mistura que nos gera essa sensação de algo sutilmente repulsivo, infantil, engraçado e sensual não é aleatória. Com doses de exagero e desprezo pela elegância, essas peças mergulhariam no já apontado universo do camp. Isso não ocorre. Como nos lembra Umberto Eco, o feio, o cômico e o obsceno formam um conjunto. Ainda que o excesso não seja o caminho escolhido por Mendes, os demais elementos o separam de seu colega de mostra.

Dois marceneiros e suas estranhezasO que os reúne é outro tipo de trato com o palpável. Vilém Flusser apontou que a matéria finca suas raízes no grego Hylé. Essa era a palavra usada para referenciar a matéria-prima, aquilo que transformamos, ou metamorfoseamos, em outra coisa. Em simultâneo, esse era o termo para floresta, bosque ou madeira.

Matéria e madeira compartilham uma origem que nos fala da metamorfose do mundo, da carne da terra, dos demorados processos de nascimento, morte e continuidade. Esse é um exemplo do que podemos perceber para além do tempo de contemplação dos objetos do cotidiano: uma árvore que brota e alimenta-se dos nutrientes do passado, cresce e expande-se rumo ao céu, seca, morre e continua a ser matéria, Hylé, até entregar-se às mãos de um marceneiro que rompe a natureza e gera o estranho.

Em “Siderações”, encontramos dois marceneiros, um de corpos e desejos, outro de luzes e memórias.

*com revisão de Alana de Oliveira Ferreira

Rodrigo Hipólito
Rodrigo Hipólito
Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Escritor, historiador da arte, crítico e podcaster. Professor do Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM-UFES, 2015-2020), do Departamento de Comunicação (DEPCOM-UFES, 2023-2025) e dos cursos de Pedagogia e Psicologia da Faculdade Europeia de Vitória (FAEV, 2015-2023). Editor da Revista do Colóquio e redator do site Nota Manuscrita.

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