Estou agora deixando o Porto em direção a Lisboa, onde essa missão, quase diplomática, se segue. Mas, minha estada nessa cidade, onde nasceu Portugal, não poderia ter sido fechada de outro modo: na tarde, a certeza da nossa cooperação formal com a Universidade do Porto; à noite, a abertura de uma mostra de Francisco Tropa, na Fundação Serralves. Me senti acolhido, protegido pela arte, pela sociologia e pela antropologia, as quais nos levam à certeza de que conseguimos cumprir seu papel social no que se refere às questões da cultura e da identidade local, regional, nacional – sem perdermos nossa origem. Camadas de proteção que nos acolhem, como a teoria das cinco peles, de Hundertwasser. O corpo que se pensa corpo na sua interação consigo e com o universo, mas, seguro em cada uma das camadas que lhe protegem.
Levei anos, talvez duas décadas para ser apresentado à teoria das cinco peles. Não pretendo aqui me delongar na teoria, mas apenas na sua representação gráfica – mesmo porque a imagem sintetiza a grandiosidade dessa teoria. Éramos visuais antes de sermos verbais!!!
Existem diversas representações gráficas desse esquema de Hundertwasser. Escolhi este não apenas pelo seu caráter original, mas especialmente pelo seu aspecto de mandala. A nossa pele (epiderme), as roupas, nossas casas, nossa identidade (social) e o planeta. Nos construímos nessa interação simbólica. Para Jung, a figura da mandala esta intimamente (ou simbolicamente) relacionada à transformação e crescimento interno para se alcançar a totalidade. São tentativas inconscientes de buscar uma “cura” para nossa forma interna.
Mas, que este assunto tem a ver com essa minha saída de Porto em direção à Lisboa? Ou ainda, o que isto tem de conexão com a arte e cultura capixabas, da qual tenho me empenhado em escrever.
Um Tropa e uma Jardim: dimensões do eu e da matéria nas artes
Surpreendente o aspecto intimista da obra de Francisco tropa no Serralves. A mostra tem um título interessante: AMO-TE. Intrigante o título, pois ao mesmo tempo que se refere ao verbo amar, também (já que estamos a falar de simbologia e símbolos) parece uma palavra de ordem com o verbo amotar (encostar terra ao pé de uma planta). A palavra de ordem parece ordenar que se cuide de uma planta, que a alimente antes que morra, pois, afinal, amamo-la. Não obstante, o A está envolto em um círculo, lembrando o ícone do movimento anarquista.
À medida que eu entrei na mostra, uma imagem projetada de uma ágata fatiada me trouxe à mente a artista, professora e umas das fundadoras do Centro de Artes: Freda Jardim. Entendi isto como um chamado silencioso.
A pouco mais de 32 anos, fui recebido como professor permanente no Departamento de Artes Industriais e Decorativas – DAID (atual Desing), por uma mulher com aspecto de grega, com uma fala forte. Freda Jardim era a minha chefe. Ela me apresentou o Departamento e várias pessoas que giravam em torno dela. Depois entendi melhor o por quê desse orbitar Freda. Ela era uma mulher exótica e uma chefe diferente, que tinha na secretária, a Ambrosina, o suporte administrativo que aquela cabeça de cientista das artes precisava.
Naquela época, o DAID era um ponto recortado no tempo, habitavam as artes decorativas, entre elas a minha disciplina de Tapeçaria e Tecelagem, entre outras como Joalheria, Estamparia (embora eu não entendesse o porquê de serigrafia estar em outro departamento, estamparia se limitava à técnicas mais tradicionais como o batik e o tye-die); havia também as disciplina de Freda, a Cerâmica, que ela estava abandonando, e Mosaico – na qual se dedicava com qualidade ímpar, tendo no CEMUNI I seu estúdio e ateliê na UFES.
Meu primeiro semestre foi uma adaptação à essa nova estrutura, agora como professor. Nele também minhas “aventuras” pelo universo mágico de Freda Jardim. Como chefe de departamento, ela estava lá todos os dias e, a cada dia, um prato novo. Eu sou glutão e não dispenso um novo paladar. Mas, Freda surpreendia: pizza de peroá (sim, aquele com muito espinho); mousse de taioba (que eu amo muito, mas sempre refogadinha), assim como pastas e patês dos mais variados sabores que uma mente culinária comum não pensaria… culinária era sua segunda paixão. A primeira, claro, o mosaico.
O tempo em suspensão os une, a Freda e a Francisco Tropa. Assim como, a força simbólica e nacional de seus trabalhos. Falam de si, ao falar do mundo – falam do mundo, falando de si. Artista, obra e vida se misturando.
A peça acima é uma das conexões que me remeteram ao trabalho de Francisco Tropa. Intencionalmente ou não, algumas obras projetadas de Tropa revivem a estrutura das ágatas. Pedras tão admiradas por Freda Jardim. Mas não apenas o amalgama de cristais que estão nas laminações das ágatas, o próprio uso da pedra como tessela de Freda também me veio à mente olhando a obra de Tropa. O chamado era evidente, não explícito, pois os dois tem poéticas muito distintas. A seguir, duas conexões que me evocaram Freda.
Tropa fatia a ágata e a projeta; simula a visualidade da pedra no metal. A luz como um caleidoscópio desenha a parede. Freda a toma na sua materialidade e força tátil e visual. Aliás, a maioria dos mosaicos de Freda Jardim são pedras, cristais, apresentados como se colocaram a ela, brutas. Rochas transformadas pelo tempo. Semi joias da natureza. Freda e Tropa encontraram a força da simplicidade da forma. Separados por décadas, pois Tropa nasceu em 1968 e ela em 1936; mas parecem unidos pela pele do ambiente, pela veste desse planeta que ocupamos. Depois de ver esses dois processos criativos fiquei tomado pela energia da obra de Freda. Todo o meu pensamento, naquela noite, foi tomado por Fedra e sua tentativa, ou melhor, sua intencionalidade estética de compreender e inventar uma aproximação da brasilidade de nossas rochas e materiais com o mundo da arte. A exposição do Francisco Tropa é brilhante e reflete uma maturidade poética para além da idade desse artista.
Mas, peço-lhe desculpas, pois a obra dessa artista brasileira gritou mais alto na minha motivação para escrever. A obra dela atravessou, como um raio de Zeus, a minha percepção naquela noite. Qual fênix, ave de quem ela falava (mesmo por ter renascido de um acidente quase fatal) Freda surgiu. Ela me chamava. Sussurrava silenciosamente. Penso, hoje, na manhã seguinte daquela visita, que Freda em si me lembrou dela, não como um espírito vindo do além, mas por meio daquilo que eterniza um artista: sua obra. Me senti evocado pelo universo, aqui, do outro lado do Atlântico, no mesmo momento em que a memória de Freda era atacada em Vitória. Somete entendi o porquê do chamado hoje pela manhã, ao buscar bases para escrever este texto.
Um ataque mortal à memória dessa artista: (DES)CASO COM A CASA
A casa ateliê de Freda era como ela, um experimento. Fui poucas vezes àquele local, mas me lembro do interior casa: de uma escada que serpenteava como uma bailarina pela sala, unido os seus pisos. Era como a escada de Scarlet O’hara, em “E O Vento Levou” (1939). O mais interessante é que Freda, depois de seu acidente com um carro, tinha sua mobilidade comprometida, e ela vivia com sua mãe que, pela idade, também tinha dificuldades de locomoção (hoje, inclusive, por acaso do destino, temos a mesma fisiatra). Mas, Freda explicou: essa escada era seu sonho, seu projeto pelo qual ela trabalhou anos. E ela fez.
Sua memória agora se transforma em cinzas. PEDIMOS SOCORRO!!
Os vídeos, a seguir, acompanhados de algumas fotos expõem o que acontece em silêncio em sua casa. Esses vídeos são o retrato do abandono; feitos agora, eles mostram no que está se transformando o legado de uma mulher única que dedicou sua vida à arte, à experimentação e ao mosaico. Se, por fora a casa parece apenas esquecida, por dentro temos a dimensão da violência contra essa mulher, contra essa artista, contra nossa memória cultural.
Para mim, a escada da casa era um índice da força dessa mulher, a expressão de sua capacidade de se superar, ou de suportar a dor do que desejava: ela não tinha limites – e quem a conheceu sabe as dores do caminhar depois do acidente. Sua presença, seu trabalho, sua entrega era para além de si; sua origem diplomática lhe apresentou o mundo; sua brasilidade lhe deu seu trabalho.
Sua imponente escada, sonho quase juvenil com pitada de romantismo, parece se reduzir agora a galhos secos que agonizam ávidos, derramados de seus livros que se espalham pelo que sobra de sua casa. Alguns desses livros, sofridos pelos anos de abandono (fazem 24 anos que Freda nos deixou); outros jazem ao chão pelas mãos dos que lhes roubaram as estantes; muitos outros estão sendo devorados pelas águas que descem do telhando por onde esse santuário foi violado para ser saqueado.
São memórias devoradas pelo fogo em noites frias de abandono; pelo fungo úmido do descaso. Sua casa era mais uma de suas peles que a protegiam. Tinha uma marca naquela rua: um grande lagarto de mosaico verde no muro frontal. Sinal de vida, de brasilidade. Este foi um dos primeiros marcos do apagamento familiar sobre a existência dela. Removeram a obra do muro. Impessoalizaram a casa como mais um muro branco. Apagado. Essa pele agora também está magoada, ferida pelo fenômeno da degradação social que nossas cidades vivem, mas mais ferida porque sua família, que deveria engrossar a quarta pele que a protegeria, a despe. A expõe.
Mulher sem limites físicos, geográficos ou conceituais. Freda se reinventava a cada momento, seja no mosaico, seja na cozinha (sua outra grande pesquisa).
O chamado inicial
Foi o trabalho do artista português (Francisco Tropa) que me trouxe à memória aspectos vitais da materialidade e a jovialidade de Freda Jardim. Ou talvez ela tenha me acionado, cá desse lado do Atlântico para escrever esse chamado a todos. Ao escrever este texto, e a saber de tudo que está a ocorrer nesse momento em Vitória e à ferida aberta na casa de Freda, não posso negar outra analogia com a mostra no Serralves: TROPA, AMO-TE. AMOTE… letras e palavras que, como tesselas, organizadas desenham outros mundos e ações. Freda me chamava por meio da luz de suas ágatas refletidas no trabalho de Tropa. Outros em Vitória também ouviram o chamado.
Na manhã dessa escritura, uma tropa de amigos em um grupo de rede social, se mobilizou para conseguirmos algumas informações e imagens, muitas das quais nem terei espaço nessa coluna para colocar. Mas, mais admirável é que essa rede de afetos que se estabeleceu, também assume comigo o grito de denúncia sobre o legado físico e artístico de Freda Jardim: a casa e o ateliê-escola na residência de Freda Jardim, nas proximidades da UFES.
AMOTE! – em português de Portugal, é colocar terra ao pé de uma árvore. Protegê-la, adubá-la para crescer. Sinto que estamos a fazer isto agora com Freda: aproxima-se o verão e ela é uma planta de memórias que precisa de cuidados para renascer das cinzas outra vez. Freda, como Fênix (aliás esse era o nome de sua escola), está adoecida novamente, sendo despida dessa pele que a protegeu por anos. SUA CASA ameaçada; morada que lhe deu suporte para renascer de um acidente quase fatal e seguir forte. Referência mundial no mosaico. Agora apagada pela família. Esquecida na Escola de Artes… mas segue viva naqueles que se importam com a cultura capixaba.
Freda Jardim é um legado. Não podemos deixar que sua memória se perca. Pouco temos hoje da sua obra. O que existe ou existiu em seu ateliê está sendo perdido.
Entendo agora o chamado na mostra de Tropa.
Temos Jardim a proteger!!
Revisão: Giuliano de Miranda
Serviço:
Teoria das cinco peles: Para Hundertwasser, o corpo humano tem cinco peles, a partir das quais o indivíduo se cria por camadas de identidade que partem da sua derme, indo em direção do lugar onde vive: A Epiderme, O Vestuário, A Casa, A Identidade Social e O Meio Global e Ecológico. Mais detalhes em RESTANY, P. Hundertwasser: o pintor-rei das 5 peles. Alemanha: Taschen, 1999.
Sobre a Fundação Serralves: visitar https://www.serralves.pt/