
Essa semana escrevo novamente nos ares do Douro, em terras lusitanas, depois do frio da Inglaterra. Quase o nômade que sonhava ser quando, ainda criança, tentava conhecer o mundo em um atlas geográfico. Esse mundo tem se tornado real aos olhos e ao corpo de um andante. Assim, caminhando hoje pela orla do Rio Douro, esse objeto me chamou a atenção de longe. Fui tomado pelo desejo de entender essa suspensão pelo que me parecia dois troncos de madeira, mas isto o deixaria demasiadamente fragilizado. Fui, obviamente, me levando a me aproximar. Pela curiosidade fui fotografando.

Tentava evitar o sol – que, por mais estranho que me pareça, se põe no mar, o que me tira todo senso de direção -, pois ele deixava a imagem muito escura. Ao me aproximar, girei em torno da peça e fui surpreendido por uma figura que parecia se descolar. Fui para a placa de identificação para tentar dar conta de alguma correlação ao que eu via e entender o que aquela peça fazia no local. O monumento reúne e articula três ideias fundamentais: o ser humano libertado; o drama da condição humana; e a universalidade da obra de Ferreira de Castro.
Foi uma surpresa ler a placa: “[…] Homenagem da Associação Internacional dos Amigos de Ferreira de Castro e dos artistas luso-brasileiro”. Tenho estado estas semanas a falar desse nomadismo de artistas. Esse fluir entre Brasil e Portugal… esse movimento de volta. Assim, de assalto fui mais uma vez atravessado por algo que me fez ter vontade de mudar minha programação e reiniciar a coluna desta semana. Tomado pelo instante dessa descoberta ao acaso, num simples caminhar pela orla do Douro.
Fui procurar por Ferreira de Castro e vi que é um escritor português, cujo primeiro livro (Prisioneiro por Ambição, 1916) foi escrito em condições adversas no Brasil para onde tinha emigrado no início do século XX. Filho órfão de portugueses pobres, Ferreira de Castro migra para o Brasil na expectativa de ajudar sua família, indo parar em uma fazenda no interior da Amazônia, em Belém. Mesmo vivendo em um ponto de exploração de seringueiras no Pará, com uma vida regrada pelas restrições financeiras, ele conseguiu escrever seu primeiro Romance juvenil, iniciando sua carreira como escritor. Ferreira de Castro em uma entrevista, de 1966, confessa o amor à obra entregue ao mundo em detrimento do valor estético que ele mesmo atribuiu ao seu romance inicial:
É sabido que um escritor ou poeta de vocação, mesmo que se encontre
em graves dificuldades materiais, prefere ver editado o seu livro,
sobretudo se se trata do primeiro, do que o lucro que dele lhe possa
advir. O meu romance chamava-se Criminoso por Ambição e não tinha
mérito algum. Mas nunca mais a literatura me produziu uma alegria
tão grande como a que tive quando vi em letras tipográficas essas
ingénuas páginas aurorais, que escrevi aos catorze anos, cheio de
nostalgia, de sonho e de esperanças. Impressos, os nomes das
personagens que eu havia criado davam-me a sensação de ser um
Deus. Ia descendo a Rua 1° de Maio12, era já de noite, e junto de cada
poste de candieiro público, detinha-me, reabria o exemplar que levava
e, com uma volúpia que jamais voltou assim intensa, não cessava
de reler as suas identidades…
Ferreira de Castro, ao relembrar de sua sensação inicial de ver seu primeiro livro impresso, compara-se ao Criador. Um Deus que deu vida a suas personagens, não feito do barro, mas de tinta tipográfica. O preto sobre o papel, na forma de letras materializando ideias. Tinta. Papel. Suporte. Inventividade. Criatividade. São elementos de uma narrativa autobiográfica que trafega entre o afeto e o social. Discute de si para entender o coletivo. Assim também corrobora o social.
Uma Identidade Nômade
Essa identidade dos que migram pelo mundo é constantemente tomada pelo espanto do que se lhe coloca o novo. A paisagem que se faz diante dos olhos assombra-se e deleita-se, segue outro trecho de Ferreira de Castro:
Quem pela primeira vez vê o caudaloso Amazonas, essa
monstruosidade liquida, tem logo a impressão de que ali tudo é grande
e significativo. Nas margens arbustos e arvores entrelaçam-se numa
confusão mystica. Aqui uma praia formosa onde adejam gaivotas
multicolores, ali a terra deslocada formando um grande barranco
íngreme, que para vingar-se da arvore que lhe suja a seiva, a despenha
do alto no immenso campo sem plantio que lhe corre aos pés
. Tudo é bello e sublime!
Assim, parece que o estrangeiro em terra de alhures é tomado de sobressalto por tudo que lhe salta aos olhos. Algo de místico se instaura. Y-Fu Tuan (um geógrafo coreano) diz que, com olhar nativo ou estrangeiro, estabelecemos uma relação de afeto com o ambiente que habitamos, ele chama esse fenômeno de topofilia. A topofilia nos faz traçar fazeres e saberes a partir dessa relação com o ambiente. Inicialmente, mediados pelo olhar estrangeiro (para quem tudo é novo e estranho), vemos aquilo que os nativos não mais veem. Depois, nos tornamos nativos e vivemos o que o estrangeiro jamais vai compreender. Não somos mais os mesmos depois de habitarmos outros lugares. Eu mesmo não sou. Vamos nos tornando mundo e não cabemos exatamente em lugar algum mais. Fica sempre a vontade de continuar mudando… Uma identidade nômade.
“Com a pintura aprendi a fazer tinta e pão”
Assim, eu chego ao que me interessa muito apresentar a vocês hoje: Uma artista migrante já dentro do Brasil – trafegando da tradição nordestina ao gigantismo de São Paulo, quase acampada nas águas capixabas, movida para Portugal. Uma nômade brasileira que tomo como Espírito-Santense, pelo orgulho que ela tem de se dizer nossa. Talvez pela força de ser mãe de uma da nossas Marias que nos fazem perceber a força da mulher capixaba.
Claudia Colares, em analogia com Ferreira de Castro, torna-se uma prisioneira por ambição. Desloca-se de sua terra para além mar pela vontade de crescer, se entrega ao árduo cotidiano dos que são forasteiros e se tornam alvo da desconfiança, até serem tomados como nativos. Uma estrangeira em terras lusitanas. Embora nós brasileiros nunca somos exatamente estrangeiros, pois somos geneticamente e culturalmente como um povo só em Portugal – temos uma ou outra diferença, mas somos mais iguais que diferentes.
Colares é pintora e desenhista, apesar de autodidata, é graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo, espaço onde teve exemplar participação com o projeto Boca de Forno, uma produtora independente no Centro de Artes, aos moldes de uma empresa júnior tão estimulada pelas universidades. Desde criança, apesar de seu jeito extrovertido, tem na recolha de si sua inspiração. O silêncio lhe parece ser necessário para desenhar, e folhear livros em busca de referências artísticas. A artista afirma que a arte sempre esteve presente em sua vida: “Do meu pai herdei a musicalidade e a independência de saber que posso aprender tudo. Isso eu deveria saber. Da minha mãe, a resiliência, a objetividade e o cuidado com as oportunidades”.

Seu espírito coletor se revela mesmo quando ela toma da natureza a plasticidade da cor que parece ser manualmente construída. Todo o mundo em torno de Colares é pictórico. Uma mulher que não mais cabe em um lugar específico. Uma nômade por escolha. Quando pergunto como esse espírito nômade se instaurou? Ela respondeu:
Claúdia Colares: Descobri que sou Nômade, depois de uma longa caminhada. Ser questionador e querer ser cobaia das próprias teorias provoca um longo caminho pra seguir. Propus seguir baseando-me num mapa. Lógico que não um mapa comum e sim um mapa traçado pela necessidade de aprender diretamente da fonte. Explico: Meu primeiro mestre em pintura, me chamou a atenção para a matéria prima imprescindível para qualquer produção na arte. A Luz. Com isso, veio a segunda lição que é: a consciência de que essa luz muda a cada átimo. Entendi, ali mesmo que Batista Sena (o mestre) era uma fonte e que, se eu quisesse desfrutar desse conhecimento, deveria ficar mais perto, mudei-me de Fortaleza para Camocim, quase que instantaneamente. Sem tempo para pensar no que ficaria para trás. Assim se deram todas as outras tantas mudanças.
Perguntada sobre o que a move no seu processo criativo, ela comenta:
Claúdia Colares: O que me move é a vontade de observar as coisas e aprender com as pessoas “in loco”. O resultado de todas essas deslocações, resultou em um registro estético e além disso, mais questionamentos e mais teorias a provar. Um desses resultados estéticos é a descoberta de bandeiras que devemos erguer para servir, a um ou outro pensamento filosófico que se alinha à essência do pensamento de paz já mencionado.
A artista tem obras expostas em São Paulo, Lisboa e muitas outras cidades no Brasil, Portugal e Espanha. Sempre evidenciando sua paixão pela tinta e pelas formas e se deixando tomar pelos lugares que habita, sem perder a identidade de sua pintura. É o levantamento de bandeiras desses lugares que habita, quase nunca individuais, que levou esta artista – meio capixaba, meio nordestina, meio brasileira, meio portuguesa – a ter uma de suas obras entregues, em mãos, a não menos que o ex-Primeiro Ministro Português, António Costa, em 2019, quando já vivia e convivia em seu estúdio em Vila Real, no norte português.

Sigo compartilhando uma pequena conversa com ela, que, gentilmente, encontrou um tempo para me responder.
Cirillo: como foi este instalar-se como artista em Portugal, mudaram as oportunidades?
Cláudia Colares: Bem, Cirillo, me instalar em Portugal, foi algo inimaginável até 2017. Todos os meus planos até 2016, enquanto estava em São Paulo, era o de fazer uma extensa residência artística no país de Gales. Só que: A situação no Brasil mudou vertiginosamente. E, através de um acordo entre Brasil e Portugal, minha filha pode vir estudar aqui. Ela, até então, estava na USP (em São Paulo). Com isso, decidimos fechar o ateliê, transferimos a matrícula e viemos para cá. Esse foi o lado prático da coisa. O lado lúdico. É que, de Portugal só conhecíamos o fado, um pouco sobre o arquivo do Tombo, um pouco da universidade de Coimbra e um pouco sobre a Universidade de Lisboa e Porto.
O período do ateliê em São Paulo, no bairro do Tatuapé, foi um momento de grande expansão. Nesse período, conheci pessoas interessantíssimas que frequentavam o ateliê e assim, a minha obra, adquiriu novos colecionadores. Isso foi um tremendo incentivo para que eu usasse todas as minhas forças de Nômade, mais uma vez.
Com Maria, já instalada na FLUP – UPorto nós implantamos o ateliê aqui em Pomarelhos. Utopias que se tornaram possíveis. Nós só tivemos que planar um pouco a terra. E, com o total apoio de meu querido marido John, construímos ateliê. Muito da escolha do Norte, deu-se tecnicamente pois, a região de Trás-os-Montes, nos daria mais tranquilidade. E, mais ainda a Oeste, que é o caso de Vila Real, o tempo correria mais devagar. Nos instalamos numa aldeia. Maria ficou no Porto e John e eu viemos para morar na montanha.

CC.: […] Dessa nossa parceria surgiu a oportunidade de construirmos um ateliê com uma boa capacidade de produção. E o primeiro contato com a comunidade foi através de uma reunião com a Junta da Freguesia de Torgueda, onde foi solicitado a produção de um carro alegórico para o carnaval de 2019. Fizemos o carro alegórico com a ajuda da comunidade. Comunidade fantástica, super organizada e sabe o que quer. Juntos, colocamos as mãos à obra. Começamos uma relação mútua de admiração e respeito. Esta foi a porta perfeita para começar a aprender sobre a cultura do Norte português.
A cultura deles é muito voltada para o social. E acho isso excelente. E, a partir desse primeiro encontro com a comunidade, as coisas se tornaram mais afetuosas e tranquilas. Com isso, pude retomar a pesquisa na pintura abstrata. Parece coisa rápida, mas não é. Eu estou aqui desde 17 de MAIO de 2017 e os amigos ainda são os mesmos da chegada. Já em 2020, sorte de encontrar o professor Orlando Farya que hoje reside em Lisboa. Ele foi meu professor de pintura um no centro de artes da UFES. Desse encontro surgiu um monte de coisa linda. Uma dessas coisas boas foi a volta para a universidade. Porque, através do tio Lando, fui convidada para o projeto “Chiado, Carmo – Paris” de 2023 a 2024. Através desse projeto, pude mergulhar na pintura, fazer novos amigos, expor em Lisboa, Porto, Santarém, Arraiolos, assim como em Paris, Bolonha, Granada e Lótz.
C.: VC sempre foi uma pessoa muito dinâmica e com entradas no mundo e no sistema das artes no Brasil, em especial no eixo paulista, como você constrói essas possibilidades agora em Portugal?
CC: As oportunidades são muitas. Conhecer e expor em Museus que admiro. Participar de novos acervos, estudar essa luz e a escala cromática das paisagens dessa terra, são uma das vantagens. Para uma nômade, cabe ressaltar, a curta distância entre os dois portos lusófonos.
C.: Lembro de ter acompanhado a construção e a efetivação de seu estúdio-ateliê e de que você interagia com a comunidade com cursos de pintura. Cheguei a ver a foto sua com o então primeiro-ministro, Antônio Costa, presenteando-o com uma pintura que me pareceu ser, se me lembro bem, um agradecimento por uma obra realizada por ele que favoreceu toda a comunidade. Como isso reflete a sua relação com a comunidade local portuguesa?
CC: Na verdade, essa pintura que leva o título: A Curva do Sordo, foi a primeira obra do projeto #EN2 – Prática Itinerante da Beleza Curvilínea. O objetivo do projeto é percorrer a extensão total de 738 quilómetros e onde assumo o arquétipo de Flâneur e pinto uma paisagem nas cidades que percorre essa importante estrada. Com as chancelas, da Associação da EN2 e Junta da Freguesia de Torgueda, a pintura passou a pertencer à Junta da Freguesia de Torgueda, que, na ocasião da visita de Antônio Costa à Vila Real, foi solicitado que eu fizesse a entrega dessa obra pessoalmente, a fim de demonstrar os estreitos laços entre a nossa comunidade e a pessoa do então, Primeiro-Ministro.
Todo artista capta para si, um capital político. Essa captação dá-se de forma voluntária ou involuntária.
C.: Fala um pouco sobre como essa mudança para cá afetou seu processo criativo?
C.C: Afetou como afeta a luz do sol! O fato de poder dedicar mais tempo a criação, torna tudo mais desafiador. A luz é uma luz nova que, incidindo sobre as novas paisagens, novas paletas vão surgindo. Nesse momento é que causa a parte árdua que é a compreensão desse novo espaço. Dessa cosmovisão, surgem a liberdade de propor esculturas, novas dimensões nas pinturas, novos projetos. Tudo isso reunido, vai deixando um rastro de comprometimento com o que queremos deixar para o mundo.
Percebo que: quanto mais complexos vão se tornando os discursos, mais simples vão se tornando os resultados empíricos.
A avalanche de novos autores, críticos e artistas, e o contato com a nova paisagem (política, social e cultural), tem enchido as obras de mais problemas. E isso é muito bom!
Sinto que, esse conjunto de fatores, deu uma maior fluidez para transitar (de forma colaborativa) entre o desenho, a fotografia, a escultura e a pintura. O que sinto verdadeiramente, é a sensação de estar usando de uma só vez, de forma consciente, tudo o que estava sendo usado alternadamente, na “caixa de ferramentas” do conhecimento.
C.: Para finalizar nossa conversa, o que você diria a um artista brasileiro que atravessa o oceano, no sentido contrário que Ferreira de Castro fez? Há oportunidades diferentes aqui?
C.C: O que diria aos que têm um genuíno desejo (necessidade) de conhecer novos lugares, que naveguem. E… quando chegarem aos portos desejados, toquem fogo em seus próprios barcos. Mergulhem na cultura e vagueiem até achar a outra margem.
Sobre isso, deixo claro que passa longe de mim, tornar-me outra identidade que não corrobore com a mais importante obra que é, a construção de minha identidade nômade.
Essa identidade, a que elegi para tramar os acontecimentos de minha trajetória artística, me é valiosa, pelo simples fato de poder desenhar um mapa original, (deixando marcado as lutas, as derrotas e vitórias) com tudo o que foi aprendido quando estive, sob cada luz ou sombra em cada destino elegido.
Claúdia Colares é dessas pessoas que marcam a vida da gente! Nos anos que convivemos, em Vitória, aprendi muito de sua organização e alimentei minha paixão pela entrega ao trabalho de promover a arte e a cultura do nosso estado.
Somos todos, como Ferreira de Castro, viajantes!!
Serviço:
Sobre Ferreira de Castro (breves notas): https://www.wook.pt/autor/ferreira-de-castro/2140?srsltid=AfmBOoqvajyg4T5gwg_eCEc9dbmC-nKlm2K7KBbEaffwl2cHxAbENJoc
Sobre Prisioneiro por Ambição: https://www.ceferreiradecastro.org/pdf/criminosoporambicao.pdf
Sobre Cláudia Colares: Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES com Formação em Arte Contemporânea pelo Instituto Tomie Ohtake. Produtora cultural e gestora de projetos culturais. Começou a produção artística como autodidata a partir do desenho. Em 1989 iniciou o processo em pintura à óleo, técnica que aperfeiçoou durante o período acadêmico. Ver mais em https://cardozofineartsmgmt.com/claudia-c/
Revisão: Giuliano de Miranda/Rafael Marotto
Obs: em transcrições de falas de Ferreira de Castro, mantive o português original.