O processo de composição de um artista, pelo menos aquele ainda fora de um padrão de mercado que alimenta o algoritmo, costuma ter um começo muito íntimo. O músico e o violão, por exemplo. Significa que a canção parte de experiências pessoais e a conexão com o público se dá pelo poder da verossimilhança, de modo que o ouvinte se sente representado com o que está sendo dito e tocado.
Em seu terceiro álbum de estúdio, intitulado “Iririu” e lançado na última semana, com 11 faixas, o músico e compositor André Prando escancara esse universo pessoal na linha de largada. A escolha do nome e da faixa-título se valem de um recorte conhecido para quem teve contato com o ambiente da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) nos anos 2000, quando o termo “Iririu” se tornou cumprimento e um movimento. A palavra, todavia, como conta André, já era utilizada nos anos 90 “pela galera que pegava carona na estrada, carona de trem em Viana, para curtir Matilde (Alfredo Chaves) no fim de semana, a natureza, a psicodelia, a fogueira”.
Para quem é “de fora”, o termo pode estranhar a princípio. Afinal, não é necessariamente poético. Mesmo que não precise justificar a escolha, para a coluna o artista ressaltou uma comparação potente: Jorge Ben, no clássico álbum “A Tábua de Esmeralda”, conta sobre Hermes Trismegisto, ainda mais estranho, mas que se configura em um contexto “imagético”.
Feita a abordagem do relato íntimo que denomina o trabalho, o compositor segue com os relatos pessoais, mas expõe de forma rica significados diversos e históricos. Em “Kaluanã, O Grande Guerreiro”, terceira faixa, ele versa em reggae sobre a infância e a vida adulta, homenagem ao filho – batizado com o nome – de um casal de amigos do Caparaó. “Kaluanã”, que significa “o grande guerreiro em Tupi-Guarani, evoca ainda o manifesto antropófago de Oswald de Andrade, quando André canta “tupi, or not tupi”, numa referência ao homem que se alimenta da própria identidade.
Já em “Zum Zum Zum (André Prando, Guilherme Bozi e Rany Baby)”, segunda canção do álbum, feat com Juliana Linhares, o compositor convoca o baião para fazer jus a suas aulas de forró, evidente para quem o acompanha nas redes sociais, com o amparo da obra vasta de ídolos como Alceu Valença e Gilberto Gil – artistas que não são necessariamente do gênero, mas sempre transitaram por ele.
“Voltinha de Bike”, sétima canção, parte das andanças do compositor com seu meio de transporte, a bicicleta, por Vitória. E faz referência ao cientista que criou o ácido LSD, Albert Hofmann, nos anos 30, quem experimentou a “onda” de sua primeira superdose andando de bike.
A faixa oito, “Patuá”, por sua vez, é inspirada pelo tango, ritmo latino com o qual o artista teve contato em viagem em 2023 ao Uruguai e à Argentina. Tal latinidade, segundo André, tem ainda influência do Clube da Esquina. O compositor conta que a letra, numa música em parceria com Luiz Gabriel Lopes, foi escrita quando fazia show em Betim, cidade mineira da Grande Belo Horizonte, e mira a estrada como mote.
A estrada, marca da composição dos mineiros, se apresenta no universo do “Clube” como uma projeção imaginária de um lugar a ser alcançado, como relata Paulo Thiago Mello em seu livro sobre o disco: “a imagem da estrada aparece como a metáfora de uma saída possível. (…) No simbolismo on the road, um mundo a se chegar, onde supostamente haverá redenção”, escreve o autor.
Outra característica de “Iririu” que reflete a intimidade é a retomada da parceria de André com o produtor Rodolfo Simor, quem também conduziu “Estranho Sutil”, álbum da discografia do artista, seu primeiro, que o apresentou de forma mais robusta ao mercado.
Nesse cenário, “Iririu” proporciona momentos familiares, o mais marcante deles em “Dharma”, décima faixa, música exuberante também em parceria com Luiz Gabriel Lopes. A primeira versão dela foi lançada na pandemia, no EP “Calmas Canções do Apocalipse”, e agora Prando traz um arranjo de orquestra e participações no coro final de amigos músicos, como as cantoras Aline Maria e Luiza Dutra, e da mãe de André, Adalgiza Prando.
Há uma busca pela grandiosidade nos arranjos do álbum, refletida na própria “Dharma” e em faixas como “Frágil” (quinta) e “Nuvem Passageira” (nona), releitura de Hermes Aquino em feat com Chico Chico.
Toda essa história terá o primeiro capítulo ao vivo neste sábado, 27, no festival Tenda Lab. Além de Prando, o evento traz nomes – nos dias 26 e 27 – como Alcione, Fundo de Quintal, Filipe Catto, Macucos, Odair José e Roberta de Razão. Confira a programação.
Antes disso, no entanto, confira o bate-papo completo da coluna com André Prando e conheça com mais profundidade as origens e conexões musicais de seu novo disco.
Felipe Izar: Houve uma retomada na parceria com Rodolfo Simor, que produziu “Estranho Sutil” ao seu lado, o primeiro disco que te projetou para voos mais amplos. O que significa neste momento essa retomada?
André Prando: Quando eu gravei o “Voador” em 2018, meu segundo disco, com produção de JR Tostoi e do Henrique Paoli, foi um álbum gravado no Rio com um artista (Tostoi) que é uma grande referência para mim e no cenário nacional. Foi um disco que fez a gente circular bastante, em diferentes festivais, no Rock In Rio, um trabalho que foi um marco. Eu fiquei um bom tempo depois disso, enquanto eu já preparava o material de “Iririu”, pensando sobre como eu iria dar o próximo passo, como ir além, como trabalhar com um outro grande produtor. E eu me dei conta que o “Iririu”, já em minha cabeça na época, falava de um André Prando mais íntimo. Fez e faz sentido contextualizar minhas origens para me disparar ao mundo. Por isso, fez mais sentido produzir este disco com os meus, na minha ilha, onde fui criado. No “Estranho Sutil” (primeiro álbum da carreira), eu ainda estava muito preso ao formato de banda, arranjos da minha cabeça. E lá naquele período o Rodolfo Simor quis me propor uma construção estética diferente, aproveitando minhas referências. A gente falava de Sgt. Pepper’s (disco e música dos Beatles), Clube da Esquina, Tropicália. Mas na época eu não consegui seguir essa ideia. Quando eu cheguei para fazer o “Iririu”, então, eu disse ao Rodolfo: Mano, vamos fazer aquele disco que a gente não fez? Foi o caminho que seguimos.
Em “Iririu”, de fato, há um contexto “de volta para casa”, com diferentes abordagens e estilos musicais. A faixa-título, por exemplo, se trata de um recorte de uma história marcante da Ufes. Em “Zum Zum Zum”, para quem te acompanha, uma ligação com as aulas de forró. Da mesma forma, “Voltinha de Bike” representa suas andanças por Vitória. Conta mais sobre esse relato íntimo na conexão com o público.
“Iririu” se trata do meu contato com a palavra na universidade. Comecei a conhecer um pouco mais de arte, de música, de literatura, de cultura. Momento em que, na Ufes, as pessoas usavam o termo “Iririu” como cumprimento. Era uma identidade e uma unidade. Mas é uma palavra que vem até de antes, da galera, nos anos 90, que pegava carona na estrada, carona de trem em Viana, para curtir Matilde (Alfredo Chaves) no fim de semana, a natureza, a psicodelia, a fogueira. Então, a sensação que eu tive quando terminei de compor a música é que, quem entende o que eu estou falando, ouve de forma nostálgica, se emociona. Porém, para quem não conhece se torna um cenário imagético, como Jorge Ben cantando sobre Hermes Trismegisto no disco “A Tábua de Esmeralda”. Eu sempre acho que a música não tem obrigação de ser autobiográfica, mas aqui, sim, tem muita coisa de mim. De qualquer forma, a mensagem nunca é uma só, há diferentes interpretações. Eu sou uma pessoa que gosta de ir ao samba, ao reggae, numa festa de música eletrônica. Por que eu não poderia mostrar isso? Eu sou um artista, não sou uma banda de rock, uma banda disso ou daquilo. Assim como minhas referências são livres, Caetano, Alceu, Milton Nascimento, Sérgio Sampaio, Gil, eu sempre me senti livre para passear onde eu quisesse. Alceu Valença e Gilberto Gil, por exemplo, não são artistas do forró, mas têm vários forrós em suas abrangências musicais. Então, por dançar forró e consumir o estilo, não podia faltar o baião, como em “Zum Zum Zum”. Em “Voltinha de Bike”, eu sou da cultura da bicicleta. Sempre a usei como meio de transporte. Ao mesmo tempo, eu tinha a ideia de falar da ‘bike LSD’. O cientista que criou o ácido (Albert Hofmann, nos anos 30), quando fez uma super primeira dosagem foi para casa de bike e a onda bateu no caminho. Apelidaram, então, o primeiro LSD de “bike”. É isso: eu falo do meu universo e de diversas culturas do mundo. Em “Kaluanã”, outro exemplo, eu trago Oswald de Andrade e o movimento antropofágico, ao cantar “tupi, or not tupi”, que está no manifesto antropófago dele, que significa o homem se alimentar de si, da própria identidade.
Ainda sobre “Voltinha de Bike”, ela nos remete a uma faixa divertida, assim como “Gatinhos na Internet”, música do EP “Calmas Canções do Apocalipse”. “Nuvem passageira” é uma releitura, tal como foi “Última Esperança”. E “O Lapidário De Pedras No Caminho” com referência do samba, da bossa, como podemos dizer, de certa forma, em “Choro Plebeu”. Vocês buscaram essa conexão também com trabalhos anteriores?
Interessantes as conexões que você fez, mas talvez isso tudo esteja conectado no sentido de eu ser um artista e a minha obra estar latente no todo. Não é uma regra. Eu sempre gravei releituras, como “Última Esperança”, do Sérgio Sampaio. “Nuvem Passageira” é uma música que eu já queria gravar, já tocava no repertório. Mas os trabalhos são conectados no sentido de obra mesmo. São meus filhos, né?
Dharma, um sucesso da pandemia, veio no disco com um arranjo de orquestra. Um arranjo, aliás, que lembra, no final, “Girassol Da Cor Do Seu Cabelo” (Lô Borges): a construção para o momento apoteótico. Como foi essa experiência?
Legal você ter falado de “Girassol Da Cor Do Seu Cabelo”, porque não foi uma referência muito intencional, não. Mas é semelhante, né? E é uma música que eu amo. O Clube da Esquina é uma grande referência para mim, talvez o disco que eu mais ouço na vida. E ele também expressa muito bem essa riqueza de gêneros. “Dharma” é um conceito hindu, oriental. E, quando eu estava compondo, eu pensava muito em George Harrison. Eu queria, para o “Iririu”, essa coisa grandiosa, com a orquestração, sem a intenção de erudição; mas uma coisa popular, porém rebuscada. E no final apoteótico eu coloquei um coro afetivo para fazer, naquele conceito hare krishna: artistas do ES, como Luiza Dutra, Aline Maria, Rômulo Quinelato. Juntei amigos, coloquei minha mãe também.
Mais uma vez, você aproveitou bem o falsete, como em “Kaluanã”. Conta mais sobre essa marca construída com o tempo…
Pois é. Essa coisa do falsete nasceu porque, na adolescência, eu escutava muito heavy metal, metal melódico, estilo que tem aquela voz aguda. Eu tentava cantar e não conseguia, né, por não ser o meu registro vocal. Então a forma de eu conseguir cantar na época era fazendo falsete. Havia, portanto, um estudo meu para que isso se tornasse uma coisa natural. Com o passar dos anos, eu criei um registro grave na voz, que é o meu grave mesmo, mas tenho facilidade de saltar para o agudo, tanto usando a voz de peito de uma forma rasgada, com drive, quanto saltando para o falsete. Neste disco, eu consegui utilizar essa tecitura vocal de uma forma natural, não necessariamente quando eu estou em notas agudíssimas. É um disco que eu estou mais maduro no canto e consigo me encontrar bem nessas variações, como em “Kaluanã”.
Já “Patuá” traz a latinidade. Essa influência vem de onde, principalmente?
O Clube da Esquina sempre foi uma referência muito rica e forte para mim de latinidade. Patuá foi uma música que escrevi em parceria com Luiz Gabriel Lopes, mesmo parceiro de “Dharma”. Quando ele me enviou a música para fazer a letra, eu estava em Betim (em Minas, na Grande BH) fazendo show. E aí naturalmente eu quis compor sobre o estar na estrada, sobre o artista na estrada, sobre a vida cigana. A música já trazia esse clima de estar fora de casa. E então tive essa ideia de fazer uma coisa latina. Acabou sendo nessa vibe meio tango, estilo que tive muito contato em minha viagem para o Uruguai e para a Argentina, no ano passado. Tive a ignorância de pensar que poderia ser um estilo velho, mas o tango está longe disso. Lá é tão forte quanto o samba no Brasil.
Na discografia, sinto um caminho um pouco diferente em “Voador”. Uma produção que levou os arranjos para um lado mais alternativo, a voz mais baixa. Tem essa sensação também?
No “Iririu”, eu quis muito que a voz, apesar da importância de todos os elementos e da quantidade de instrumentos para equilibrar, estivesse “bem na cara”. Falei isso com o Rodolfo e com o Jackson Pinheiro, que mixou o disco. Realmente é uma coisa que difere do trabalho do “Voador”.
Como entende sua música hoje no mercado que alimenta ao algoritmo?
O mercado funciona de diferentes formas. É sempre um desafio entender onde estamos localizados. O mainstream funciona de uma forma, o midstream, de outra. Se você é independente, de outra forma. Se tem gravadora, investidor… mas eu penso no trabalho como obra. Não sou um artista que fica lançando singles o tempo todo para alimentar algoritmo. O que importa para mim é a arte. Dentro disso, a gente tenta se inserir no mercado, da forma como faça sentido para mim e para o público.