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9 de outubro de 2025
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Fernando Carreiro
Fernando Carreiro
Jornalista e consultor especializado em reputação, crises de imagem, comportamento humano e estratégia política e de marcas, é autor de ‘Campanhas, Casos & Cases
A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade de cada um deles e não reflete a posição de ES Hoje

A direita está abusando do direito de errar

A política, como a História, conhece seus ciclos de ascensão e declínio. Há pouco tempo, a direita brasileira parecia ter conquistado o privilégio de comandar o obtuso jogo das narrativas (vocábulo que, de tão usado na modernidade, caiu em descrédito): ditava a pauta nas redes, mobilizava massas, organizava resistências e oferecia ao governo Lula uma oposição capaz de expor sua fragilidade. O petismo, cercado por hesitações internas e pela falta de clareza estratégica, parecia condenado à defensiva. Há na política um paradoxo essencial: o poder não reside apenas em governar, mas em narrar. Quem narra organiza o tempo, dá forma ao instante e o converte em destino.

Mas a História se move, e o faz com ironia. A ida de Eduardo Bolsonaro aos Estados Unidos, em busca da tutela de Donald Trump, tornou-se símbolo desse excesso de confiança que se transmuta em fragilidade. Ao aceitar a lógica de tarifas contra o próprio Brasil como arma política, a direita abriu mão da narrativa da soberania que tanto proclamava. Foi a vez, portanto, de Lula vestir o papel do estadista que defende o país diante da ingerência externa. Alexis de Tocqueville lembrava que as democracias sobrevivem menos pela força das instituições e mais pela capacidade de seus líderes interpretarem o sentimento coletivo. Foi o que ocorreu: a direita soou dependente; Lula, por contraste, pareceu intérprete da nação.

No plano interno, a reviravolta foi ainda mais eloquente. A recente aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto que isenta do Imposto de Renda aqueles brasileiros que recebem até R$ 5 mil (e são maioria absoluta no país), acompanhada da sobretaxação sobre os mais ricos, não foi apenas cálculo fiscal: foi um gesto de imaginação política. O governo lançou mão de uma pauta incontornável, iniciada com o movimento do “nós contra eles”, “pobres versus ricos”, iniciativa tão popular que, em um raro episódio, não levantou um só voto contrário dos deputados na aprovação da proposta. Da extrema-direita à extrema-esquerda, todos foram favoráveis. Nas redes, parlamentares da direita chegaram a comemorar a aprovação do projeto do governo Lula.

Pela primeira vez em muito tempo, a oposição silenciou sua crítica. E nesse silêncio ficou claro que havia perdido não apenas a capacidade de obstruir, mas a própria bússola narrativa.

Hannah Arendt dizia que a política é o espaço da ação e da palavra, onde os homens aparecem uns aos outros e se revelam. A direita, que outrora parecia senhora dessa visibilidade, hoje se mostra encurralada em repetições fatigadas. Seus discursos, antes inflamados, soam ocos. Sua articulação, antes certeira, se dispersa em divisões regionais e candidaturas múltiplas. Já não há projeto comum, apenas fragmentos de ressentimento. O que antes era potência tornou-se ruído. Ciro Nogueira, senador bolsonarista, chegou a reconhecer recentemente o que chamou de “falta de bom senso da direita”: “ou nos unificamos ou vamos jogar fora uma eleição ganha outra vez”. É do mesmo Ciro a frase que dá título a este artigo.

Enquanto isso, o governo, antes acusado de errático, aprendeu a reordenar seu discurso. A narrativa voltou a girar em torno do Planalto. Não é apenas uma questão de votos no Congresso ou de prestígio diplomático: trata-se de recuperar o monopólio da interpretação. A esquerda, ao assumir pautas que afetam diretamente a vida cotidiana, tornou-se de novo a intérprete de um futuro possível.

Errar é inevitável na política; insistir no erro pode ser fatal. A direita passou a errar não por acidente, mas por convicção. Enclausurada em estratégias gastas, aposta na repetição como se fosse método. E ao abusar do direito de errar, entregou ao adversário a possibilidade de reinventar-se.

Tocqueville advertia que a democracia tem uma dinâmica quase biológica: não se congela, não se estabiliza, sempre se desloca para onde houver vitalidade. Hoje, a vitalidade migrou. A direita, que acreditou poder viver da memória de suas vitórias recentes, tornou-se prisioneira da própria inércia. Lula, que parecia à beira da exaustão, reencontrou na imaginação política a chance de reorganizar o enredo.

Em última instância, o que está em disputa não é apenas o poder, mas a interpretação do tempo histórico. E enquanto a direita se perde nos ecos de si mesma, a esquerda recupera a palavra que lhe dá substância.

Fernando Carreiro
Fernando Carreiro
Jornalista e consultor especializado em reputação, crises de imagem, comportamento humano e estratégia política e de marcas, é autor de ‘Campanhas, Casos & Cases

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