Ao menos 276 pessoas no país perderam a visão, parcial ou totalmente, em mutirões de cirurgias de catarata nos últimos 15 anos. Em alguns casos mais graves, elas tiveram o globo ocular removido. O levantamento foi feito pela reportagem com base em relatos publicados pela imprensa nas ocasiões.
Os mutirões aumentam o risco de infecções. Na terça-feira (22), o CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmologia) lançou recomendações de segurança para mutirões após nove pessoas terem o globo ocular infectado e removido em um mutirão em Parelhas (RN), entre os dias 27 e 28 de setembro.
Ao jornal, a presidente do CBO, Wilma Lelis, defende que o número de casos de catarata no Brasil não justifica mutirões de cirurgias feitos por prefeituras e estados.
Segundo ela, o SUS (Sistema Único de Saúde) é capaz de absorver a demanda ao longo do ano e que, em 2023, o sistema público realizou mais de 1 milhão de cirurgias de catarata. Já a fila de pacientes à espera atualmente é de 167 mil.
“Considerando o número de [casos] de cataratas que surgem anualmente e o número de cirurgias já realizadas, que não tiveram complicações, a gente não precisa de mutirões”, diz Lelis.
A especialista avalia que a cirurgia sem urgência passou a ser usada para demonstrar eficiência no atendimento de saúde pelo poder público.
“Se a gente olhar a época do ano que elas tendem a acontecer e a frequência, a gente observa que acaba sendo uma atitude dentro de localidades que fazem isso com o objetivo de fazer uma prestação de serviço aparentemente muito rápida à população e isso acaba gerando riscos”, afirma.
CASOS SE ESPALHAM POR REGIÕES DO PAÍS
No caso de Parelhas, a prefeitura calcula um total de 15 pessoas que apresentaram sintomas de endoftalmite após as cirurgias.
A infecção costuma ser uma das causas comuns de ocorrências após os mutirões. O combate à inflamação é feito com antibióticos para evitar atingir o cérebro. Nos casos mais graves, a recomendação é a retirada do globo ocular e a substituição por uma prótese, mas apenas com fins estéticos.
Em nota, o governo do Rio Grande do Norte afirma ter solicitado mais informações à prefeitura de Parelhas, à empresa responsável e à maternidade onde as cirurgias aconteceram.
Segundo a gestão potiguar, a prefeitura teria bancado o mutirão com as próprias economias. O estado trabalha com a possibilidade de “falha na gestão dos procedimentos, em especial com relação à esterilização”. As vítimas foram encaminhadas para a unidade especializada do Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal.
Em 2016, em São Bernardo do Campo, 22 pacientes tiveram endoftalmite aguda devido a instrumentos sem esterilização adequada pela equipe médica.
Na ocasião, o mesmo bisturi foi usado em 27 pessoas, uma após a outra, das 9h às 16h. O médico só foi penalizado em setembro deste ano, conforme mostrou reportagem da Folha de S.Paulo.
A prefeitura de São Bernardo, no ABC Paulista, afirma que os pacientes cegados em 2016 continuam acompanhados por uma equipe de oftalmologistas, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e assistentes sociais, além de receberem manutenção de óculos, próteses oculares e colírios.
Em 2019, 14 pessoas apresentaram complicações oculares em Mato Grosso após um programa de mutirão do governo do estado. O episódio gerou processos na Justiça e pedidos de investigação pelo Ministério Público.
O governo do estado afirma ter descontinuado os mutirões e investido em um programa para diminuição de filas de espera, onde os procedimentos são realizados na estrutura dos hospitais especializados já criados.
Nos três casos, as cirurgias foram feitas por empresas terceirizadas contratadas pelos municípios para o serviço. “A gente sugere primeiro que os gestores busquem essa assistência na própria cidade”, pontua Lellis.
O motivo é pós-cirúrgico. “Os médicos que vão fazer isso nessas contratações vão ao local, operam e depois vão embora. Então, a manutenção do acompanhamento desses pacientes no pós-operatório é fundamental”, diz.
O guia do conselho também indica que os atendimentos sejam feitos em centros cirúrgicos oftalmológicos especializados. Unidades móveis, tendas hospitalares ou ambientes hospitalares de outras áreas da saúde são contra indicados. Em Parelhas, os procedimentos foram feitos em uma maternidade.
Segundo o conselho, os ambientes especializados são equipados com máquinas de limpeza e esterilização que diminuem riscos de contaminação dos instrumentos, capazes de transportar fungos ou bactérias.
“Um ambiente cirúrgico e com médicos locais já testados é o jeito mais seguro. Acontece que, muitas vezes, economicamente, eles acabam fazendo negociações que privilegiam esse tipo de busca por outros profissionais”, acrescenta.
A catarata é o envelhecimento natural e gradual do cristalino. A estrutura atrás da íris equivale a uma lente e seu desgaste prejudica a visão, mas a cirurgia é considerada eletiva pelo Ministério da Saúde. Ou seja, sem urgência.
Em 2023, a pasta criou o PNRF (Programa Nacional de Redução das Filas de Cirurgias Eletivas, Exames Complementares e Consultas Especializadas) com orçamento de R$ 600 milhões para a redução da espera por procedimentos eletivos como a catarata em municípios e estados.
Os efeitos da catarata podem ser diminuídos com uso de óculos, explica Lelis. “Essas características da cirurgia de catarata, o número [de atendimentos já feitos] e a possibilidade de melhora em qualquer tempo que a pessoa for operada, fazem com que nós desaconselhamos a realização de mutirões”, diz.
O projeto Saúde Pública é uma parceria com a Umane, associação que apoia iniciativas no âmbito da saúde pública.
Recomendações para pacientes em mutirões de catarata
(Fonte: Guia Conselho Brasileiro de Oftalmologia – Mutirões de saúde)
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – MARCOS CANDIDO