Medo, incerteza e silêncio compõem o confuso quebra-cabeça que norteia a história vivida por mais de 800 famílias que residem nas comunidades vizinhas Vila Esperança e Vale da Conquista, ambas situadas no bairro Jabaeté, em Vila Velha.
Ocupadas há nove anos, essas comunidades enfrentam uma iminente reintegração de posse determinada pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), marcada para a próxima sexta-feira (28).
As ocupações que foram oficialmente reconhecidas como área de interesse social para moradia pelo ex-prefeito do município, Max Filho (PSDB), em 2020, começaram a enfrentar perseguições e ameaças de despejo após a revogação da decisão em 2022 pelo atual prefeito de Vila Velha, Arnaldinho Borgo (Podemos).
Apontada como liderança da Vila Esperança, Adriana de Jesus, a “Baiana”, e integrante da coordenação capixaba do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), contou ao EShoje sobre a preocupação, luta e resistência dos moradores da região.
“Lá começou em novembro de 2016. Desde dezembro do último ano a gente já tem um processo movimentando contra nós e de lá pra cá estamos lutando. Somos uma comunidade muito grande, eu diria que é a maior ocupação que nós já tivemos no Estado do Espírito Santo, que há nove anos tem lutado pela posse da sua terra, do seu barraco, do seu espaço”, destaca.
A decisão de reintegração de posse foi tomada pelo juiz Manoel Cruz Doval, que determinou que o cumprimento do mandado deve ser realizado com o auxílio da Polícia Militar e, se necessário, com a participação da Secretaria Municipal e/ou Estadual. O juiz também autorizou “ordens de arrombamento e demolição”, evidenciando a gravidade da situação.
Segundo informações, a Defensoria Pública apresentou um Plano de Remoção que não foi elaborado em conjunto com as famílias afetadas, gerando ainda mais insegurança entre os moradores. De acordo com a liderança do Vale da Conquista, Fabrício Bazellato, em nenhum momento houve diálogo com os integrantes da ocupação.
“Não apresentaram plano algum, a única coisa que ouvimos da Defensoria foi que a decisão foi posta e que vão retirar os moradores das áreas e, simplesmente, eles não podem fazer nada”.
Ainda segundo Fabrício, os moradores foram à prefeitura para entender o motivo do pedido de reintegração, mas não obtiveram resposta. “Fomos ao Ministério Público e não tivemos uma resposta satisfatória. Simplesmente querem jogar as famílias na rua, que estavam numa área que a própria prefeitura designou para elas. Agora, como a prefeitura revoga um decreto de uma área onde existem mais de 800 famílias sem nenhum apoio de órgão algum?”, questiona.
A falta de infraestrutura básica agrava ainda mais a situação das famílias, que vivem em condições precárias e sem apoio do poder público. “Somos uma comunidade não assistida, que passa necessidade, sem água, sem energia e sem rede de esgoto. Temos pessoas com necessidades especiais, idosos e gestantes, todas com esperança de uma moradia digna”, diz Fabrício.
O motivo por trás da reintegração de posse levanta inúmeros questionamentos. “Baiana” afirma que a área, anteriormente considerada uma mata fechada e sem documentação, foi alvo de interesses imobiliários.
“O atual prefeito revogou o decreto de interesse social e passou para a área uma das empresas imobiliárias que quer construir um condomínio de luxo no local, tirar as famílias carentes para colocar um condomínio de luxo”, conta.
Com o despejo previsto para ocorrer a partir do dia 28 de março de 2025, a incerteza paira sobre as comunidades. “Para onde vão todas as famílias que aqui estão? Essa é a pergunta, onde que vai colocar essas famílias? Até hoje o plano deles é só de desocupação, não remoção”, questiona “Baiana”.
A situação é ainda mais complexa quando se observa a nuvem de fumaça em torno do proprietário do terreno. Segundo informações concedidas ao EShoje, há suspeita de fraude na documentação das terras e isso não foi considerado pelo juiz. No entanto, apesar das especulações sobre o que será feito na área após a desocupação permanecerem incertas, a luta das comunidades pela terra e pelo direito à moradia continua firme.
O medo de quem não tem para onde ir

Diante de um cenário de despejo e reintegração de posse, as histórias dos moradores revelam não apenas a luta por moradia digna, mas também a resiliência diante das adversidades.
Ione Duarte Pereira, moradora da Vila Esperança, fala sobre a importância de destacar como as ocupações se desenvolveram ao longos dos anos e o vínculo de pertencimento que a comunidade estabeleceu com a terra.
“Nossa território produz, somos na maioria pessoas pretas, nós temos mais de 500 crianças no território, nós temos pessoas com deficiência. (…) Nós temos uma história que foi construída dentro daquele território”, argumenta
Ela conta, em entrevista, que se mudou para a Vila por não conseguir manter um aluguel. “Quando chegamos na comunidade vivemos um bom tempo morando numa barraca até conseguirmos subir uma estrutura. Hoje moramos numa casinha confortável, de bioconstrução. No nosso quintal plantamos muita comida que alimenta a minha família, meu esposo e minha filha, e os meus vizinhos. É o nosso lar, nosso espaço seguro há cinco anos”.
A situação se torna ainda mais preocupante quando Ione menciona a falta de diálogo com o poder público. De acordo com a dona de casa, o diálogo dos órgãos públicos tem sido apenas com o judiciário.
“Alguém nos procurou após a notificação? Ninguém. A prefeitura de Vila Velha nos procurou? Não. A Assistência Social municipal? Também não. Eles participam das reuniões, têm advogados nas audiências, mas não vêm dialogar com a comunidade”, afirma.
Com uma renda mensal R$ 600, a moradora Aline Nascimento compartilha já ter vivenciado o despejo. “Eu morava numa ocupação do Vista Linda 1 e 2, mas veio a reintegração de posse e nos tiraram de lá sem direito a nada. Vim para Vila Esperança em 2023, fui acolhida e pude construir meu barraco”, relembra.
Atualmente, ela mora em um barraco na Vila com o o filho, de apenas 9 anos. Assim como Ione e todas as outras famílias da região, Aline alega não ter condições de manter um aluguel fora da comunidade. “Minha renda é só R$ 600 do Bolsa Família, às vezes consigo fazer um dinheiro para complementar a renda fazendo unhas”.
Ela afirma estar muito preocupada com a possibilidade de vivenciar uma nova reintegração. “Se fizerem mesmo a nossa retirada de lá, não tenho ideia do que fazer e também não tenho para onde ir. Como vou pagar um aluguel com uma renda de R$ 600? É muito complicado, porque meu filho faz acompanhamento psicológico. É muito difícil”.
Governo Federal busca soluções
Por meio dos Ministérios da Justiça e das Cidades, juntamente com a Secretaria da Presidência da República, o Governo federal convocou uma reunião urgente com o governo do Estado e a Prefeitura de Vila Velha, sob as gestões de Renato Casagrande (PSB) e Arnaldinho Borgo (Podemos), respectivamente, para buscar soluções para as ocupações em Jabaeté.
Durante uma reunião realizada esta semana, os ministérios exploraram alternativas para a aquisição do terreno, visando destiná-lo à moradia social ou encaminhar as famílias para programas habitacionais.
Como o Ministério da Justiça não pode interferir na decisão judicial, devido à separação dos poderes, a estratégia em discussão envolve um diálogo com Casagrande e Arnaldinho, buscando encontrar uma solução para as famílias impactadas.
Muitas perguntas, poucas respostas
A ausência de respostas por parte das instituições responsáveis, como a Prefeitura de Vila Velha, a Defensoria Pública e o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, prejudica ainda mais a compreensão sobre o caso.
Questionada sobre a ausência de apoio por parte da assistência social e a falta de diálogo direta com as famílias residentes das ocupações, a prefeitura de Vila Velha optou por não encaminhar um posicionamento.
O EShoje também tentou contato com a Defensoria Pública (DPES) para esclarecimentos relacionados a acusação das lideranças das ocupações sobre o Plano de Remoção elaborado sem diálogo com a comunidade e, até o fechamento da matéria, não teve retorno.
O Tribunal de Justiça do Espírito (TJES) também foi demandado. A Intenção era entender mais sobre as questões que envolvem a ausência de informações a respeito do dono da propriedade, no entanto, até o fechamento da matéria, as demandas não foram atendidas.
O Direito à Moradia no Brasil

O direito à moradia é um dos pilares fundamentais da dignidade humana e está consagrado na Constituição Federal do Brasil (art. 6°). De acordo com o advogado especialista em direito público, Sandro Câmara, esse direito vai além do simples acesso a um teto, trata-se de garantir uma habitação adequada, que contemple não apenas um abrigo, mas também condições de segurança, salubridade, infraestrutura básica e acesso a serviços públicos essenciais.
Câmara destaca sobre a responsabilidade do Estado de implementar políticas públicas habitacionais eficazes como, por exemplo, o programa Minha Casa Minha Vida, que visa facilitar o acesso à moradia para famílias de baixa renda.
Além disso, o advogado também destaca a importância de uma regulamentação adequada do uso e ocupação do solo urbano, que deve ser feita de maneira a atender às necessidades da população.
“A regularização fundiária de assentamentos informais é uma questão crucial. O Estado deve destinar recursos orçamentários suficientes para a habitação de interesse social e criar mecanismos de financiamento habitacional que sejam acessíveis à população de baixa renda”.
Ainda segundo o especialista, a atuação da sociedade civil é igualmente vital na promoção do direito à moradia. Organizações não governamentais, movimentos sociais e comunidades têm um papel ativo na formulação de políticas públicas. Eles participam de conselhos de habitação e desenvolvimento urbano, contribuindo para a criação de soluções que atendam às necessidades locais.
“É fundamental que a sociedade civil monitore a implementação das políticas públicas, propondo e executando projetos complementares às iniciativas estatais. Essa mobilização é essencial para defender o direito à moradia e fiscalizar a destinação de recursos públicos”, afirma.
A efetivação do direito à moradia, segundo Sandro, depende de um esforço conjunto entre o Estado e a sociedade civil. “A luta pela moradia digna é uma responsabilidade compartilhada. Precisamos focar na redução do déficit habitacional e garantir que as moradias atendam às condições mínimas de dignidade, especialmente para a população de baixa renda”, finaliza.