O Museu Capixaba do Negro (MUCANE) recebe, no dia 25 de novembro, o lançamento de Rasgando o Silêncio: Vozes da Resistência, obra que marca um dos movimentos mais potentes de produção comunitária, educativa e cultural do Espírito Santo nos últimos anos. O livro nasce como parte de um processo pedagógico que envolve jovens, educadores e moradores de territórios historicamente vulnerabilizados — e que, justamente por isso, guardam uma riqueza inesgotável de experiências, memórias e modos de existência que desafiam o apagamento.
Fruto da parceria entre o Centro de Referência das Juventudes (CRJ) Território do Bem e a Escola Estadual Hildebrando Lucas, o livro foi desenvolvido no âmbito do Projeto Integrador de Pesquisa e Articulação com o Território (PIPAT). Mais do que um produto final, a obra representa um percurso de formação que coloca adolescentes e jovens como agentes ativos da construção do conhecimento sobre seus próprios territórios.

O ponto de partida é a transcrição integral do filme documental Rasgando o Silêncio: Vozes da Resistência, produzido anteriormente pelo CRJ. A partir dali, as equipes pedagógicas e os estudantes transformaram o material audiovisual em texto escrito, análise, ilustrações, poemas e reflexões críticas que compõem o livro agora lançado. O resultado é uma obra múltipla, construída com rigor, afeto e participação direta das comunidades envolvidas.
A publicação organiza-se em três eixos que dialogam entre si para pensar identidade, memória e resistência. O primeiro capítulo mergulha em duas geografias simbólicas do Espírito Santo: Sapê do Norte — referência nacional na luta quilombola — e o Morro do São Benedito, território de forte presença negra na área urbana de Vitória.
Ali, o texto costura história, sociologia, política e vivências do cotidiano. Um dos pontos centrais é o impacto da silvicultura do eucalipto sobre as comunidades quilombolas, tema sensível e amplamente debatido nas últimas décadas. O avanço dessa cultura industrial alterou paisagens, comprometeu modos de vida tradicionais e afetou diretamente os vínculos territoriais — questões que os estudantes abordam com profundidade, apoiados por pesquisas acadêmicas e por relatos colhidos durante o processo formativo.

No Morro do São Benedito, por sua vez, o livro ilumina memórias urbanas negras, narrativas de resistência e formas de organização comunitária que persistem mesmo diante da violência, das pressões imobiliárias e do racismo estrutural. A noção de reterritorialização ganha destaque ao mostrar como moradores reinventam práticas, relações e sentidos de pertencimento para permanecerem no território mesmo frente às adversidades.
Essas análises são acompanhadas por ilustrações produzidas por alunos da Educação Especial da Escola Hildebrando Lucas, que contribuem com um olhar sensível, singular e acessível ao conjunto da obra.
ENTRE VOZES, IMAGENS E POESIA
O segundo capítulo reúne a transcrição completa do filme documental Rasgando o Silêncio: Vozes da Resistência. Diferente de muitos processos editoriais, aqui a força não está apenas na adaptação do audiovisual para o formato escrito, mas na preservação da oralidade, das nuances da fala e da presença dos entrevistados. As vozes dos protagonistas — jovens, quilombolas, moradores, educadores — permanecem vivas, diretas e sem mediação excessiva, reforçando o compromisso ético do projeto: permitir que a comunidade fale por si mesma.

O terceiro capítulo abre espaço para poemas criados pelos estudantes ao longo das atividades do PIPAT. São textos que conversam com as dores e alegrias da vivência em territórios negros, com a força ancestral que atravessa gerações e com as formas de resistência cotidiana que moldam a subjetividade desses jovens. As ilustrações, novamente produzidas pelos alunos, articulam poesia e desenho numa relação imediata entre corpo, território e expressão.
Rasgando o Silêncio vai além da função editorial. Ele se inscreve como uma ferramenta pedagógica alinhada à Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Ao produzir conhecimento sobre seus próprios territórios, os estudantes passam de receptores de conteúdo a produtores de análise e reflexão crítica — algo que transforma tanto o ambiente escolar quanto a relação entre escola e comunidade.
A experiência também reforça o papel dos equipamentos públicos de cultura, como o CRJ Território do Bem, na promoção do protagonismo juvenil. O processo formativo envolveu oficinas, rodas de conversa, caminhadas exploratórias, exibição do documentário, debates e atividades de escrita e ilustração. Professores, pesquisadores, artistas, fotógrafos, membros das comunidades e os próprios alunos atuaram como corresponsáveis pela construção coletiva da obra.
Essa multiplicidade de vozes e olhares se reflete na edição do livro, organizada por Ricardo Costa Salvalaio, com coordenação de pesquisa do Professor Tiago Vieira. A capa, criada por Bruna Spadeto Oliveira a partir de desenhos de Ketlen Rocha Pereira, sintetiza visualmente a dimensão afetiva e política da obra.
Ao lançar Rasgando o Silêncio, o CRJ Território do Bem e a Escola Hildebrando Lucas reafirmam o compromisso com práticas educativas que fortalecem identidades e valorizam histórias que, por muito tempo, ficaram invisibilizadas. O livro funciona como registro, como gesto político e como instrumento de formação cidadã.
Ele também aponta para uma discussão mais ampla sobre o papel da juventude nas narrativas históricas do Espírito Santo. Em vez de serem apenas contadas, essas histórias passam a ser contadas por quem habita e transforma esses territórios. E isso muda tudo: muda o lugar da memória, muda a relação com o passado, muda o modo de olhar o presente e muda, sobretudo, as possibilidades de futuro.
No lançamento, marcado para o MUCANE, o encontro entre autores, comunidade e leitores deve reforçar esse horizonte coletivo. A obra chega ao público como um chamado à escuta e à ação — um convite para que as narrativas negras, quilombolas e periféricas ocupem definitivamente o lugar que lhes cabe na vida cultural e política do estado.











