Vivemos em uma cultura onde o câncer é muito estigmatizado até hoje. Em pleno século XXI percebo o medo que as pessoas sentem em relação a essa doença, não digo o medo por si só de descobrir o câncer, mas por achar que câncer é sinônimo de morte; ou de pegar câncer de alguém que tenha câncer só por ter tido contato com essa pessoa; ou até mesmo por ficar com a “cara do câncer”. Susan Sontang, em seu livro A Doença como Metáfora (1984), demonstra isso muito bem:
Pessoas acometidas de câncer, em número surpreendentemente
elevado, vêem-se afastadas por parentes e amigos e são objeto
de procedimentos de descontaminação por parte das pessoas
de casa, como se o câncer, a exemplo da tuberculose,
fosse uma doença transmissível.
Muitas metáforas cerceiam o câncer, como por exemplo: peste, força maléfica que invade o corpo; eventos anteriores à vida do indivíduo; sentimentos dolorosos; coisa alienígena que come o corpo da vítima por dentro; dor e sofrimento; dentre outros.
Infelizmente até hoje percebo muitos pacientes com câncer que sentem vergonha por ter a doença e acabam escondendo das pessoas, talvez pelo medo de julgamento, talvez pelo medo de crítica, talvez pelo medo de culpabilização, ou talvez pelo medo do estigma. O real motivo nunca saberemos, mas é muito triste ver pacientes já tão fragilizados com a própria doença, precisarem enfrentar esse tipo de sentimento e sofrimento.
Maruyama, em O corpo e a cultura como lôcus do câncer (2006) traz:
Dentro da perspectiva cultural o câncer é uma das doenças que,
ao longo de sua história, tem sido associada à punição ou
castigo, o que faz com que as pessoas que vivenciam esse
processo de adoecimento, além dos sintomas e sinais inscritos
no corpo, também carreguem a carga moral associada à doença.
Dessa maneira, corpo com câncer é ressignificado por aqueles
que padecem desse mal, que passam a atribuírem-se culpas
diversas (4), explicitadas em expressões como: “o que fiz
para merecer isto?” ou “por que eu?”.
O câncer é a enfermidade mais temida pela população, e infelizmente quem já teve, sente mais medo ainda de ter de novo e ter que passar pelo tratamento novamente. Percebo que nesses casos, o medo não é nem só pela volta da doença, e sim pelo sofrimento sentido com o tratamento e as reações que muitas das vezes os pacientes acabam tendo em decorrência das quimioterapias.
Em nossa sociedade, a pronúncia da palavra câncer traz
diferentes imagens e significados, sendo que muitos persistem
até hoje na subjetividade das pessoas, como a concepção de que
o câncer é uma doença que espalha ou uma doença do espírito.
O significado da culpa também está presente nessas pessoas,
pois estar com o câncer tem sido relacionado a hábitos de vida
não saudáveis e a comportamentos desvalorizados em nossa
sociedade. (MARUYAMA, 2006)
Esse estigma em volta do câncer faz com que muitas vezes os sintomas sejam negligenciados pelo indivíduo e encarados como “normal” no dia a dia. Percebemos nitidamente no trecho de O corpo e a cultura como lôcus do câncer, de Maruyama (2006):
…quando os sintomas iniciais da doença aparecem, as pessoas
“naturalizam” as anormalidades do corpo, ou seja, enquadram as
anormalidades àquilo que seja reconhecido e aceitável no seu
grupo social. Exemplos dessa naturalização estão presentes
quando os sintomas prenunciadores do câncer e relacionados às
alterações intestinais, como ressecamento e sangramento
intestinal são identificados pelo grupo social como sendo uma
“hemorróida”(7) , um problema de saúde comum, portanto
“natural” e que pode ser facilmente “curado” com o uso
de cuidados populares e não pelo cuidado profissional.
Por mais que o medo exista, não podemos deixar que isso nos paralise, evitar procurar saber o que estamos sentindo de diferente, só faz retardar um diagnóstico e agravar algo caso seja descoberto. A sociedade vai sempre estigmatizar algo, mas se deixarmos de nos enxergar com nossos próprios olhos, e passarmos a acreditar somente naquilo que é dito sobre nós, podemos deixar de realmente ser aquilo que poderíamos ser.