Dia desses meditava sobre a expressão espanhola “pero no mucho”, que significa algo como “porém não muito”, e sua influência sobre a nossa qualidade de vida. Retornei alguns milênios no tempo, quando ensinava-se que a certeza de que as leis serão aplicadas é mais importante que seu eventual rigor.
O Brasil, através de leis das mais rigorosas do mundo, protege seus consumidores – “pero no mucho”, já que nosso conhecido espírito tolerante acaba atenuando eventuais sanções até que desmoralizadas fiquem.
O Brasil, através de leis das mais avançadas do mundo, protege seus filhos dos efeitos nefastos da criminalidade – “pero no mucho”, pois as prisões populadas quase que exclusivamente por miseráveis e a ausência do Estado em diversos rincões lançaram-nos em deplorável realidade, justificadamente comparável a algumas guerras que flagelam a humanidade.
O Brasil, através de leis das mais meticulosas do mundo, protege o ambiente empresarial – “pero no mucho”, pois os infindáveis meandros da burocracia lançam sobre as empresas aqui instaladas uma das maiores cargas administrativas que a humanidade jamais concebeu, tornando belos princípios “letra morta”.
O Brasil, através de leis das mais belas do mundo, protege suas vítimas de crimes – “pero no mucho”, pois a ausência de instrumentos que permitam transformar a teoria em prática lança na miséria e no desamparo tantos órfãos e viúvas.
O Brasil, através de leis das mais humanas do mundo, proíbe a tortura – “pero no mucho”, pois uma sociedade desigual e conflituosa acaba fechando os olhos ao que acontece em suas prisões, aceitando aquela máxima segundo a qual “tudo é aceitável contra certo tipo de gente”.
O Brasil, através de leis das mais lógicas do mundo, garante a saúde e a educação para todos os seus filhos – “pero no mucho”, pois a corrupção, no mais das vezes impune, aliada aos desmandos administrativos, desvia recursos dos hospitais e submete nossas crianças a criminosos que ditam quando e de que forma nossas escolas devem funcionar.
Leio nos jornais que traficantes limitam a circulação de pessoas em bairros pobres. Vou à janela. Contemplo nosso tão rico, pobre e conflituoso país. E fico a pensar: até quando ignoraremos a verdade óbvia de que nosso sistema legal, perdoando a digressão, não está legal?