Rio Grande do Sul tem um mosaico de casas coloridas encravadas às margens do lago manso, histórico e emblemático. Seus habitantes, gente aguerrida, simples e acolhedora, viviam em harmonia com o ritmo das águas, tecendo as vidas em tear de histórias e afetos. Mas a natureza, em fúria incontrolável diante de tantas agressões que vêm de todos os lados, capitulou destino cruel para essa comunidade e evoca ao Brasil inteiro novo olhar de permanente alerta – salvar parte das vidas que ainda restam, chorar os mortos, cuidar dos feridos e encarar a existência com novos valores, valores até conhecidos que, porém, nunca ultrapassaram as margens confinadas das palavras: e agora não há opções, temos todos se mudar o agir!
Em poucas noites e dias chuvosos, os rios antes calmos como o lago onde descansavam após sinuosa jornada, se transformaram em monstros ensandecidos. As águas subiram com força avassaladora, tragando casas, móveis e, mais que tudo, ceifando vidas e sonhos. Gritos de socorro se misturaram quase inúteis aos rugidos da correnteza enquanto as vilas inteiras, a capital quase toda, se desfaziam em pedaços. Quando a manhã chegou, o rasgar da luz dos céus revelou o cenário de devastação, dores e desolação. Restava apenas a lama, os destroços e a dor estampada nos rostos dos sobreviventes. E resta ainda o medo. Tudo o que tinham construído com suor e dedicação havia sido levado pelas águas impiedosas. Tudo. Sentiram-se nus, desprotegidos, à mercê de um destino cruel. Perderam seus bens, seus animais, suas lembranças … seus entes. Viram suas casas reviradas, seus pertences expostos à humilhação do peso daquela mistura indizível de lama e vidas perdidas.
Usando os restos de madeira e pedra, e o que mais encontram, erguem abrigos, aglomeram famílias, aglutinam em escombros. O povo compartilha o pouco que restou, a comida, a água, a força interior. A solidariedade se tornou a base para a reconstrução. Os olhos do Brasil e do mundo se uniram em funil para a terra dos Pampas.
A força das águas não foi apenas um mero capricho do destino. O Guaíba não aguentou, pobre coitado, sucumbiu, é verdade. Mas deu seu recado, como quem chora e grita aos berros, mas também sabe bater: olhem para nós, não podemos mais suportar tamanho desdém com a mãe Terra.
A soberba humana em encontrar respostas prontas para a inexplicável desordem das aglomerações humanas nas cidades e no campo se desfez na mesma velocidade com que as águas invadiram ruas e casas. Foi soprada pelo vento. Talvez esse seja o golpe mais duro, a certificação da completa incompetência e ineficiência humana em gerenciar sua própria existência no Planeta. Objetificou-se o ser humano e sua relação com a natureza como quem monta uma vitrine.
A dor dos gaúchos também é nossa dor, é verdade. Mas é também, ou ao menos deveria ser, um grande alerta para o caminho tomado por nós em relação ao nosso auto manejo, a nossa fragilidade frente a potente força da natureza.
Sabemos, com o tempo, as vilas renascerão. As casas, mais resistentes, poderão ser erguidas em terrenos mais altos. No entanto, invocando Kant, será necessário sair do estado de menoridade, imposto por nós mesmos, para realizar a dura tarefa em nos responsabilizar de verdade, empenhando tanto quanto pode nossa existência , enquanto agentes transformadores que temos o singelo poder/dever de ser. Cada qual há de fazer sua parte, entregar sua cota de ‘sacrifício’ … mudar o modo de existir.
Esta tragédia deixa marcas profundas, mas também ensina a importância da união, da resiliência, da esperança e da responsabilidade.
Não estamos cada um por si … não podemos estar cada um por si – a opção egocêntrica não resiste a uma só noite de chuvas e a prova foi dada.