A algumas semanas eu não escrevo. Interrompi uma sequência de conversas sobre parte da história da escultura no Espírito Santo, via o processo poético dos professores do Centro de Artes. O motivo foi a impossibilidade de digitar, por causa de uma cirurgia complexa no ombro; o que me valeu semanas de muita dor.
Vou voltando aos poucos, sem forçar em demasia, pois digitar exige do ombro a sustentação do braço e dos dedos em movimento. Mas não podia deixar de escrever essa semana. Não porque não me doa mais fazê-lo, mas porque me pareceu inevitável falar das obras de recuperação do painel de Raphael Samu na UFES. A dor me acompanha ainda nessa escritura, mas não poderia deixar de fazê-la.

Vocês devem se lembrar que há muito escrevo sobre essa obra e suas contribuições para a arte local; para a identidade da UFES; ou ainda, para relembrar que tivemos obras que questionaram o autoritarismo da Ditadura Militar no Brasil, em plena década de 1970. O painel de Samu foi inaugurado em pleno momento conhecido como anos de chumbo, a fase mais autoritária e restritiva da Ditatura brasileira.
Esse painel, idealizado por Raphael Samu e construído a várias mãos, foi um marco inicial do papel da arte na nova universidade que se estruturava no lado norte da Ilha de Vitória. O que outrora fora um campo de golfe, tornava-se a maior empreitada para fortalecer a produção de conhecimento no nosso estado.
A jovem Universidade Federal do Espírito Santo iria reunir as faculdades isoladas em um mesmo local (não descartamos aqui que a área de saúde ficou em torno do Hospital, em Maruípe, mas as demais áreas de formação, seguiram para o campus de Goiabeiras).
Há muitos anos o painel apresenta rachaduras que tem comprometido sua estrutura com a infiltração de água, o que fragiliza a sua fixação. Segundo Celso Adolfo, o artista restaurador responsável pelos trabalhos de recuperação da obra,
“Passados mais de 50 anos, as pastilhas sofrem fissuras por conta da exposição à chuva e ao sol. Ocorrem contrações e dilatações nos materiais, e isso influi na vida útil do painel. Então, as pastilhas são removidas para correção das fissuras. E a parte artística vai acompanhando esse processo para já ter tudo mapeado e nada se perder”.
Ainda sobre essa vida útil e a estabilidade dessa obra, estudos do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA-UFES), em particular nos estudos de Marcela Belo sobre Raphael Samu, o mesmo afirmou que desde o início dos trabalhos na década de 1970, ele avisava que a parede que estava recebendo o painel não era adequada para tal finalidade e que poderia fragilizar sua durabilidade. O que de fato, os anos evidenciaram. Mas esse processo se agravou com a ampliação da avenida Fernando Ferrari.
Nas imagens a seguir, é possível ver no tracejado em vermelho o local onde o painel foi instalado e sua relação com a entrada da UFES. Segundo Raphael Samu, a escolha do local se deu também pelo fato de ser a entrada principal da universidade àquela época. Havia um fluxo de trânsito bem menor e uma boa distância da avenida. Com as obras de ampliação da avenida, essa distância foi reduzida drasticamente e o constante fluxo de carros, ônibus e caminhões aumentou a trepidação do solo e, obviamente, fragilizou ainda mais a obra, que acelerou seu processo de desgaste.

Podemos observar, nessas imagens, que o recuo da antiga passarela foi totalmente ocupado pela nova configuração da avenida. E o fluxo de carros se aproximou perigosamente da obra, que, segundo o artista, já se encontrava em uma parede que não foi preparada adequadamente para recebê-la.


O reitor da UFES, Eustáquio de Castro, afirma que esta restauração é uma obra bastante aguardada pela comunidade. “Em breve teremos o painel, que na verdade é a identidade visual da Ufes, totalmente restaurado. É um grande presente para a cidade de Vitória”.

Embora o processo que envolva essa restauração seja antecedido de um projeto de captação de recursos, segundo Rogério Borges, Secretário de Cultura da UFES, o trabalho será em diversas fases. “Iniciamos o processo de restauro neste mês de julho, com uma fase ‘invisível’ de estudos e diagnósticos, e agora estamos na execução de fato na estrutura do painel”.
Nessa fala ele se refere especificamente às obras em si, mas seu esforço antecede tal momento, para juntamente com o restaurador e a principal pesquisadora da obra de Samu no estado, Marcela Belo, estruturaram um projeto complexo para levantar recursos em emenda parlamentar para a execução dos trabalhos.
Borges, salienta ainda a importância da obra de Samu para a cena cultural local: “É um momento histórico, ao mesmo tempo em que há a sensação de ‘momento certo’ para a Ufes. Estamos diante de uma obra realizada nos anos 1970, quando não havia tanto movimento na Av. Fernando Ferrari. Agora temos um projeto estrutural para a restauração resistir aos impactos atuais”.
Destaco que fica evidente nessa fala que não se trata de maquiar a aparência do painel, mas sim de, finalmente, dar-lhe o suporte estrutural merecido para uma obra dessa envergadura. Em entrevista dada ao Programa Conexão Total, da Radio ES HOJE, Borges explicou todo o trabalho que está sendo feito interno e externo nessa empena que recebe a obra, para somente na segunda fase, iniciar a restauração em si.
A execução desse projeto está, então, em duas fases: o reparo estrutural da parede, que é o suporte do painel, e a parte artística, que acompanha a remoção das pastilhas com catalogação fotográfica para garantir o retorno preciso das peças aos seus lugares originais. Essa segunda etapa está sob responsabilidade do artista e restaurador Celso Adolfo, a quem o próprio Samu, em vida, reconheceu como a única pessoa capaz de garantir a qualidade de um processo de manutenção e/ou restauração de suas obras em mosaico de vidro.

Para Celso Adolfo, ao falar dessa missão delegada pelo próprio artista, afirma que “Ele passou a me indicar como restaurador da obra dele. Conversávamos sobre cores, formas, tudo. Ele era um desenhista enorme, que conseguia traduzir uma arte muralista muito bonita em pecinhas quadradas de 2×2. Era um mestre”.
Nesse longo processo que envolveu a preparação desse projeto, a equipe conseguiu com a família dos herdeiros da Vidrotil (antiga fornecedora de tesselas para Samu), material compatível e semelhante ao utilizado nos anos de 1970, pois com o fim dos trabalhos da fábrica Vidrotil para a produção daquele tipo de material (mais translúcido e rugoso), restaurar a obra com as novas pastilhas de vidro (mais “perfeitas”) geraria uma diferença absurda. Dai a importância de todo o trabalho que foi feito antes do início da restauração. As pastilhas antigas da Vidrotil têm uma qualidade do esmalte que lhe confere um brilho especial, afirma Sales.
Uma obra que olha para o futuro
Criada nos anos de chumbo, a obra de cerca de 168 metros quadrados traz um pouco da história da UFES. Samu coletou material estudando as particularidades da nossa universidade. Fotografou lugares, pessoas, objetos. Enfim, tudo que pudesse refletir o que era essa nova universidade que nascia.
Os jovens que entravam para desenhar o futuro do nosso estado; a tecnologia dos computadores que auxiliavam o processo administrativo; os equipamentos que ampliavam a capacidade de produzir conhecimento e desenvolver o Espírito Santo… enfim, o artista seguiu seu projeto poético e suas memórias. Ao falar do futuro, buscou a metáfora com a ficção em seus quadrinhos colecionáveis de Flash Gordon. Mas, também conectou a ficção com a realidade, criando um painel que atravessa os tempos exatamente porque faz a mediação entre o particular (sua afeição por Gordon) e o social.
Eu já escrevi sobre isto e volto a afirmar: esta é uma das principais obras brasileira, feitas durante a ditadura militar, que critica o regime de exclusão. Mas, o faz com a maestria de um gênio que disfarça com a poesia visual uma forte crítica social e política.
Samu é eterno. Uma tessela importante no tempo de nossa história.
Revisão: Giuliano de Miranda










