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25 de novembro de 2025
terça-feira, 25 de novembro de 2025
José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.
A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade de cada um deles e não reflete a posição de ES Hoje

DEVANEIOS DO FOGO, ou tempo de estar ao fogo conversando

O fogo é, certamente, uma das mais espetaculares descobertas da humanidade. Não que o homem tenha inventado o fogo. Mas sim, os modos de controlá-lo e, principalmente de o reproduzir. E nos reunimos em torno dele, ao invés de fugirmos.

DEVANEIOS DO FOGO, ou tempo de estar ao fogo conversando

É a primeira grande evidência de que os nossos ancestrais estavam buscando controlar a natureza… e se apropriando de seus elementos. Desde o ato de entender sua utilidade inicial de proteção e aquecimento, passando por meio de transportar brasas até um novo acampamento… soprá-lo para reacender… fomos perdendo a necessidade de um novo raio ou combustão espontânea para termos o fogo. Descobrimos como produzi-lo.

DEVANEIOS DO FOGO, ou tempo de estar ao fogo conversando

Ernest Fisher afirma que o que diferenciou a humanidade dos demais seres, foi nossa capacidade de produzir ferramentas; instrumentos que nos levaram aqui onde estamos.

Fez-se a luz!!

Podem estar se perguntando sobre os meus planos de seguir a história da escultura no Centro de Artes. Não tem como seguir exatamente como planejamento. Esta me parece ser uma característica da organicidade como olho o mundo. Mas, tudo segue interconectado, embora eu esteja dando um salto em alguns atores da escultura capixaba.

Na verdade, estou talvez retrocedendo aos primórdios da Escola de Belas Artes, pois a escultura foi precedida pela modelagem e Carlo Crepaz, nosso primeiro escultor em solo capixaba, era professor de modelagem – que posteriormente se tornou a disciplina Cerâmica. E aí entramos no fogo.

Mesmo se tomamos os bronzes do próprio Crepaz ou de Vilar, temos no fogo esse elemento da transformação. O fogo, em seus devaneios, é matéria da tridimensão e da vida.

DEVANEIOS DO FOGO, ou tempo de estar ao fogo conversando

Com esse meio breve devaneio também pelo fogo, chego à artista, também professora do Centro de Artes da UFES, atuando na modelagem e escultura com argila. Isabela Frade.

DEVANEIOS DO FOGO, ou tempo de estar ao fogo conversandoIsabela Frade formou-se em Artes em 1985, no Rio de Janeiro, onde trabalhou até 2020 na UERJ, como professora e ceramista. Muito cedo, começou a atuar, inevitavelmente, com as comunidades populares e tradicionais no entorno da universidade, em especial com mulheres; tem uma obra pautada em processos relacionais e, muitas vezes, colaborativos, privilegiando aspectos da obra como acontecimento.

Atualmente, é professora de Cerâmica na UFES onde segue suas atividades que integram a modelagem e a queima como procedimentos para a orientação de processos criativos que tem no barro a matéria geradora na produção de obras contemporâneas. Não obstante, segue seu ativismo ambiental, defendendo espaços naturais ameaçados pela ganância capitalista.

Segundo o Mapa das Artes no ES, ela “segue sua carreira como artista visual com experiência em diferentes meios e aprofundamento em cerâmica/escultura/instalação, produzindo no âmbito da arte relacional expandida”.

Isabela Frade é professora do Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes da UFES, cadeira cerâmica/escultura; além de docente permanente no PPGA (Programa de Pós-graduação em Artes da UFES) e também na Pós-graduação em Arte e Cultura Contemporânea no PPGARTES/UERJ, onde segue como orientadora de mestrado e doutorado. Isabela é daquelas artistas inquietas e múltiplas.

DEVANEIOS DO FOGO, ou tempo de estar ao fogo conversando
“Lo creerás, Ariadna?” ou, Você acreditaria, Ariadne? (2025). Obra exposta no Rio de Janeiro com curadoria do capixaba Augusto Herkenhof. Foto: cortesia da artista
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Mulheres arcaicas gigantes – gigantas, 2010. Realizado com mulheres do Comunidade da Mangueira, Rio de Janeiro. Foto: cortesia da artista

Ao falar de seu processo criativo, Isabela comenta que gosta de pintar, desenhar, modelar e criar coisas, mas ao ser perguntada sobre o que a move para produzir, ela afirma: “Minha força está no agenciamento, na produção coletiva de vivências extraordinárias, formas vivas – festivas ou reflexivas ou contemplativas, que possuem teores experimentais, inventivos, com vigor espontâneo na sua totalidade. Não é abrir mão de planejamento, mas de criar zonas livres para o incremento externo e as contingências locais. É como se o lugar pudesse se manifestar e, ele se manifesta!”.

Seu processo criador parece movido pelo conceito de deslocamento, “um deslocar da experiência”, como ela mesma define. Um deslocamento do ordinário para que o extraordinário da arte possa operar. Instala-se uma experiência relacional, “um dispositivo de agenciamento” – o que nos lembra muito os objetos de Lygia Clark.

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Caosmose. Obra participativa em mostra na Galeria de Arte e Pesquisa da UFES, 2024.
Foto: cortesia da artista

Ela segue, reforçando suas origens relacionais e participativas: “Eu busco isso, essas situações em grupo, encontros, exposições também são boas para esse movimento, as pessoas estão muito disponíveis. Venho de uma tradição construtiva, mas também participativa. Os impactos deixados por Oiticica, Pape e principalmente Lygia Clark. E Celeida, claro!”.

A obra Caosmose (2024) é a materialização disto, pois trabalha com modelagem coletiva, é uma obra relativa ao livro de Félix Guatarri, de mesmo nome. Fala sobre a sensibilidade da matéria e da possibilidade de um sentido aberto, sempre mutante, conclui Isabela.

Assim, com uma carreira que media à docência, arte e o ativismo, o movimento criativo/participativo de Isabela Frade tem impactado no cenário capixaba, em especial pelo seu poder aglutinador com outros ambientalistas e artistas, em especial os ceramistas, os reconectando com o Ateliê de Cerâmica na UFES.

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Isabela Frade (ao centro) com dois artistas e terapeuta, Marlene e Irineu Ribeiro. Foto: cortesia da artista

O dia do Ceramista: celebração e encontro vivencial

Dia 28 de maio se celebra o Dia do Ceramista. Segundo Isabela Frade, em conversa informal comigo, sobre esta data muito especial,

O dia do ceramista começou em 1980, foi um decreto do Paulo Maluf, na época governador de São Paulo, que decretou esse dia. É muito interessante porque esse dia se tornou […] mundial, ele é comemorado mundialmente e eu estive ouvindo alguma coisa agora no Instagram é que vários ceramistas comemoraram e muito fora do Brasil, Estados Unidos, Austrália, Europa, e aí a gente, a Finlândia, em algum desses cantos eu vi comentando que era uma coisa, acho que foi uma postagem da Argentina, que era uma coisa que tinha sido iniciada no Brasil, é interessante, não há nada oficial sobre isso, são alguns depoimentos, mas o Decreto sim, pelo menos aqui no Brasil, começou isso em São Paulo, isso agora é mundial”.

Como ela mesma afirma, agora o Espírito Santo faz parte desse movimento. E, podemos dizer que apesar de termos uma forte tradição do barro ligado aos povos indígenas, com as Paneleiras, a visibilidade dos ceramistas era relativamente invisibilizada ou colocada num nicho de artesania, ou design de objetos utilitários. Mesmo com artistas como Águeda Valentin, Irineu Ribeiro ou Zuilton Ferreira.

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Bailarina Orquidária, de Zuilton Ferreira; e Biodiversidade dos Manguezais, de Águeda Valentim.
Foto: cortesia dos artistas

As celebrações do Dia do Ceramista vão se tornando parte do calendário das artes capixabas, compartilhando com toda a comunidade, desde procedimentos tradicionais às investigações contemporâneas, relembrando que o barro e a cerâmica são partes da cultura brasileira:

Isabela Frade: Porque a cerâmica tem referência pelo Brasil todo, você vai ter, por exemplo, toda a parte da Amazônia ali, da bacia amazônica, você tem ali uma tradição oleira fortíssima, indígena […] Espanhóis e portugueses, você vai ter também aí produção oleira, por exemplo, que é o caso de Belém […] então ali você vai ter uma produção oleira muito forte, que hoje faz, continua produzindo né, intensamente, você vai ter uma coisa assim, uma cerâmica de boa qualidade e agora grandemente com referência à cultura arcaica marajoara, por conta de turismo, por conta de, também do desenvolvimento de uma estética né, de uma linguagem ali de referência. […] aqui no Espírito Santo também né, enfim, Minas, Forte, Bahia, todo o Brasil você vai ter. Centro-Oeste também. Todos esses núcleos de cerâmica hoje estão, que tem alguém, por exemplo, que tem estudado na universidade, que tem feito alguma formação e que depois participou de algum evento de cerâmica, de cerâmica de estúdio, se tornou um ceramista, que é um artista da cerâmica.

Como pode-se perceber na fala de Isabela, essas tradições se aproximaram das universidades, cabe agora a universidade reconhecer e acolher essa face da cultura capixaba, integrando, dando visibilidade e valorizando essa expressão que associa tradição e inovação.

Em conversa livre, perguntei para ela sobre como ela vê esse lugar da cerâmica nas artes e sua interface com as artes aplicadas, ela foi objetiva:

IF: A cerâmica tem um ambiente interessante porque fica entre a arte, o design, o artesanato. Muitas vezes eu uso a palavra artífice, que é a palavra do Senat, né, do Richard Senat, para falar desse cara que é o cara que cria, né, com as mãos e uma a uma, peça uma a uma, mesmo que dentro de um padrão, de uma repetição, elas são produzidas uma a uma, que garante uma assinatura a cada exemplar, né. Então podem ter séries, olha, essas séries são produzidas uma a uma, ainda que seja com um molde, vai fazer ali uma a uma, compõe um conjunto, tem um trabalho depois sobre a superfície do objeto, né. Tem muitos modos de compor cerâmica, você pode ter um que tem dez fases, você pode ter um que tem quatro, cinco, mas você não pode diminuir de quatro, porque você tem todo um trabalho de preparação da massa. Da massa, da modelagem, da secagem de alguma coisa que você produz depois no processo de secagem, seja corte, seja fusão de peça, e depois no seco e na queima, né? Então não dá para ser um processo que não tenha etapas, né? E dentro dessas etapas você vai ter vários artistas.

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José Cirillo e Isabela Frade na abertura da mostra “O Cru e o Cozido”- GAP, Centro de Artes/ufes

Sobre as atividades e as participações desse Dia do Ceramista de 2025, ela destaca que:
Isabela Frade: Tivemos várias atividades ao longo do tempo, porque a gente vem fazendo assim, né? A gente quem? Eu, né? Os alunos. Eu convido alunos para se envolver, para ajudar. Então todo o cartaz sempre é feito por um aluno, faz essa programação visual do evento. E eles participam, né? E alguns já ajudam. Esse ano eu não tive muito tempo de organizar aluno ajudando, então foi muito, eu fiquei muito sozinha. Mas comumente tem, quando a gente tem condição, né? Até monitoria, alguma coisa assim, tem como envolver mais. No momento não foi possível, então, mas tá ali participando, animando o evento. E pessoas de fora, e as ceramistas, e associação de ceramistas do Estado do Espírito Santo.

O fogo como inspiração

Perguntei se essa edição teve um tema, e ela foi precisa.
IF: Então a gente dedicou essa edição ao Fogo, foi o ápice foi o Haku com a Tereza Drago e a Lu Drago, a Luísa Drago, que é a irmã dela, são duas irmãs, e elas fazem essa dupla, né? Eu até chamei, não sei se você viu na página chamada, chamei a Tereza Drago de Fire Queen, rainha do Fogo, Fire Queen, porque realmente é uma expertise fantástica, porque tem um momento que você tem que olhar o fogo e descobrir no meio das chamas um brilho, que seria o brilho do esmalte, já no processo de fusão, né? Então, ele tá fundindo, né? Fundindo e aí você vê aquele brilho, né? do líquido, nesse momento dele. É esse momento que você tem que tirar a peça. Então, isso é uma coisa assim, enquanto é difícil. Inclusive, eu tentei ver e é bem complicado porque é muito calor nos olhos, meio que queima os olhos, né? Então, foi o ápice assim também, né? E depois quando tira a peça, ela brilhante, joga ela nasce aquelas línguas de fogo.

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Tetê e Lu Drago, irmãs no fogo. Queima de Haku. Centro de Artes, 28 de maio de 2025

Entre as diversas ações neste dia na UFES, ceramistas e afetos tiveram acesso a diversos procedimentos de queima e de troca de experiências; mostrou-se mais uma fez que é possível se fazer cerâmica sem o requinte de fornos e equipamentos industrializados. A queima de buraco foi um desses experimentos, talvez um dos mais ancestrais no processo cultural do fabrico de utensílios de barro.

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Queima aberta em buraco. Foto: cortesia da artista

O forno de buraco não é exatamente um forno porque não tem um câmara fechada de queima, explica Isabela. 

Um artífice na academia

A programação do dia do Ceramista seguiu com uma aula dada por um artista ceramista autodidata, um mestre ceramista ministrando conteúdo na universidade. Para Isabela Frade, ao comentar o valor dessa experiência na academia, ela afirma:

Isabela Frade:  “Então, é uma coisa assim, de valorizar essa mestria do artesão, do artífice. E ele ali, dando aula, também compartilhando, também, generosamente, seus conhecimentos com os alunos e convivendo. Então, eles vendo também como é a vida do artista, como ele vive; saber, ver a pessoa real, né? Vê os ceramistas ali também, porque toda a cerâmica estava ali, estavam os ceramistas. Então, eles verem que tem uma categoria profissional que trabalha na arte, que lida com a cerâmica. Então, foi essa aula, ele fez uma demonstração sobre a construção de um boi, ele fala também do simbolismo do boi, tudo que ele pesquisou. E foi muito lindo, foi muito bonito. Também apresentou a Ana Paula Carvalho que fez o TCC sobre o processo criativo do Acélio Rubens, que é esse artífice.

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Acélio Rubens, premiado em 2024, é artista plástico autodidata, pintor, escultor e ceramista, cria suas obras inspiradas em culturas antigas, religiosas e populares. Foto: Isabela Frade

A magia e a tradição do Haku

A programação do dia contou ainda com uma palestra da pesquisadora Leila Domingues que investiga o fogo, barro na ancestralidade, buscando pensar essa questão dos primórdios, da cultura, presença do fogo, o que seria o impulso criativo diante do fogo.

Nesse contexto do barro e do fogo na ancestralidade, o evento se encerrou com a queima em Haku, uma técnica japonesa que envolve a aplicação de um revestimento em camadas finas e sua queima, criando um efeito tridimensional e um toque de sofisticação. A origem da técnica remonta ao século XVI. Segundo Frade, seu uso é muito associado às cerimônias do chá no Japão.

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Isabela e Tetê junto com as peças queimadas em Haku durante o Dia do Ceramista de 2025 na UFES. Foto: Isabela Frade

Isabela explica um pouco esse processo: “ […] aí nasce o Haku, que é essa experiência de produzir de uma maneira direta, com fogo, e criar uma cerâmica muito boa, uma massa própria, que não é uma porcelana, mas que ela se torna bem parecida com a porcelana […] Mas agora nós fazemos um Haku contemporâneo, que a gente chama, pode ser em inglês, Haku experience, ou experiência Haku, que é a gente criar um exercício e fazer testes com esse Haku e pensar no fogo, pensar, entende? Fazer a experiência de vivência dessa técnica e vê-la também como um princípio filosófico, estético.

Seguimos com votos de que estas iniciativas que colocam o Espírito Santo nos caminhos do Dia do Ceramista se consolidem e que cada vez mais aproximemos a academia da cultura de base da sociedade capixaba.

Finalizo com as palavras dessa artista do fogo:

Hoje não temos mais aquela alegria nem crença no desenvolvimento, mas estamos em uma atmosfera distópica. Vejo a arte como possibilidade de imaginar mundos e relações novas entre pessoas e o próprio mundo, criar elos. Desdobramentos de novos imaginários sensíveis e, principalmente, tangíveis. Sou do tridimensional, das coisas com peso com texturas com cor e cheiro. E sabor.

Revisão: Giuliano de Miranda

José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

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