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25 de maio de 2025
domingo, 25 de maio de 2025
José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.
A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade de cada um deles e não reflete a posição de ES Hoje

Cai sobre: uma reflexão sobre a percepção do tempo e do espaço

Cai sobre: uma reflexão sobre a percepção do tempo e do espaço

Qual luz que arde em meus olhos no alvorecer
O fogo desce sobre o Douro
Minhas direções se apagam e eu me perco
Caminhos de um mundo nunca mais o mesmo

O mar sobre o qual esse ardor se deita
é o mesmo de onde na minha terra ele arde
A linha no horizonte incandescente
Ora, ao deitar-se no Douro
ora a libertar-se na minha praia

Eu vago sem rumo qual abelha perdida
No rastro dos pavões que andam pelos parques
Radiantes caudas do verde azul de mil olhos mouriscos
Todos se deitam nesse mar-rio que me abraça

Balanço sobre suas águas como madeira que boia
Giro sem sentindo enquanto meus olhos e meu corpo se contradizem
Perco o rumo
Iemanjá que me vele nesse mar de outros mundos

Cai sobre mim o sol que se levanta
Sigo como perdido
Talvez, iludido.

***

Quando, a algumas semanas fiz um passeio como turista subindo e descendo o Rio Douro, no Porto, fui tomado pela impressionante imagem do por do sol. Mas do por do sol no Atlântico Norte. O que isto muda para quem vem dos mares do sul das Américas? Tudo!

Resolvi então que essa experiência somente poderia ser descrita por meio de um poema. Fazia já uns quarenta anos que eu não os escrevia. Foi também um reencontro com uma parcela de mim. Agora que estou voltando ao Brasil, entendi que era a hora de publica-lo. Esse poema resulta de alterações na minha noção de tempo e de espaço.

No momento que vocês estão lendo a coluna de hoje, eu estou num voo, sobre o Atlântico, voltando para casa. São longas horas, num percurso do mesmo tamanho da minha vinda, mas agora parecerá diferente. O movimento da terra altera isto. Voamos enquanto a terra se move; as horas a mais de Portugal em relação ao Brasil são engolidas pelas linhas imaginárias dos fusos horários. Agora, estarei voando para trás, como em uma viagem no tempo. Protegido na capsula de um avião, para o meu corpo serão ainda dez horas de viagem. Quando eu chegar no aeroporto brasileiro, três dessas horas terão desaparecido, como se eu regressasse simbolicamente no tempo.  Sairei da aeronave e entrarei no meu passado temporal no mesmo dia; insano.

Impressionante isto, pois quando falo desde Portugal, falo como se estivesse em vosso futuro, e quando me leem, logo no início das manhãs de terça-feira, eu já estou nas tardes lusitanas. A ideia parece ser de que estamos dobrando o tempo, sincronizando passado e futuro, assim como, as diferenças espaciais desse planeta. Sobre o tempo nesse embate pessoal que me atravessa, me lembro agora de Santo Agostinho, que, em plena Idade Média, escrevia sobre a temporalidade da existência. Para ele, presente, passado e futuro não existem, pois só existem como modalidades de presente, pois quando o percebemos, ele o tempo, o fazemos no aqui e no agora, no instante presente de nossa vida: memória, visão e espera nomeiam esse tempo agostiniano.

Santo Agostinho (354-430) defende que o que chamamos de passado é, para ele, “memória“, pois buscamos o que ocorreu e o trazemos de volta à nossa percepção sensível no aqui e no agora, só assim evocamos e entendemos e que se passou (nossa memória trás ao nosso nariz o cheiro de chuva sobre a terra seca no inverno passado). Por outro lado, o que chamamos usualmente de futuro, para ele, nada mais seria que a “espera“, pois o porvir é mera abstração; para que ele (esse futuro hipotético) exista de fato, temos que trazê-lo para o aqui e agora também, como um projeto/expectativa que age sobre o corpo que o espera e isto exige de nós atos para que se realize – do contrário nem perceberíamos esse projeto. Nesse caso, Agostinho afirma que querer algo no tempo do porvir exige de nós ações no aqui e no agora, portanto não pode ser entendido como um tempo a acontecer, pois sua ação é imediata também para que o mesmo se efetive como planejado.

Deste modo, Santo Agostinho entende que a memória e a espera são modalidades do presente, que se somam à visão. O que chamamos habitualmente de presente, é denominado de “visão” para Agostinho, o tempo do aqui e do agora. A nossa percepção do tempo se dá na medida em que a memória se estende e a espera diminui; e percebemos os fenômenos sensíveis, então, na modalidade da “visão” – o tempo existe na medida em que percebemos esses fenômenos e só o fazemos no instante infinitesimal em que os vemos passar diante de nossos sentidos, depois disto eles são memória, antes disto, são espera.

Para mim, entender o tempo assim me ajudou a compreender melhor o mundo. Estar horas a frente de para quem eu falo nessa coluna, é como se eu estivesse em vossa espera. E vossa leitura do que escrevo é como se  dobrássemos essa modalidade de presente em que a espera e a memória se encontram.

Qual a relação dessa noção de tempo com a noção de espaço de um sol que se põe no mar?

Se pensarmos então o tempo como modalidades do presente; se pensado meu voo de regresso como um ato que se dobra sobre esse tempo em que a memória coabita a espera; posso dizer que quando eu pisar em São Paulo, nessa terça-feira, meu relógio saltará três horas para trás. Isto ainda me confunde a percepção do tempo. Mas, também estar no Atlântico Norte – em uma costa muito semelhante da nossa em formato, mas com o sol se pondo onde meus olhos o viram nascer por uma vida inteira-, também confunde meu corpo e a minha noção de espacialidade.

Tempo e espaço dobrados nessa experiência sensória de habitar Norte e Sul simultaneamente. Aprendi na escola que o sol nascia no Leste e se punha no Oeste. A noite era um atributo das montanhas. O obscuro e misterioso se dava em nossas matas no interior do continente, onde entre mitos e lendas nossa mitologia se edificava. Mas aqui, desse lado do mundo, o Sol se põe no mar; deita seu calor sobre as águas oceânicas… o escuro da noite, os monstros obscuros brotam dos mares, qual Adamastor…, os nossos são nas florestas…Curupiras e boitatás…

Enquanto eu regresso, meu avião deixa atrás um sol que quer encontrá-lo para deitar-se em alto mar. Penso que minha aeronave estará quase como vampiro, fugindo do Sol.

Ao chegar no Brasil, em plena tarde de mesma terça-feira, em cuja manhã que saí daqui. O Sol estará se deitando nas montanhas, cansado de atravessar o mar. Na manhã da quarta-feira, o verei novamente nascendo do mar… se pondo nas montanhas…

Por isto, embora esta poesia tenha sido escrita num dia no meio da minha estada no Porto, achei que deveria ser publicada hoje, enquanto eu volto. Enquanto me devolvo às minhas terras, nascendo do mar que me recebe.

Quando chegar, o Sol estará se pondo na montanha. Eu terei certeza de que voltei.

Serviço:
AGOSTINHO. Confissões São Paulo: Abril Cultural, 1973
Revisão: Giuliano de Miranda

 

José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

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