“Um Cachorro que queria ser crocodilo” é o título de uma obra de Freda Jardim e o tomo como insight para este texto que agora compartilho com vocês. Essa terça eu finalizo um pouco dessa minha homenagem e tristeza com o destino da memória de Freda Jardim. Essa mulher de traços geométricos que me fizeram pesar ela ser grega, quando cheguei na UFES em 1992, era extremamente acolhedora e compartilhava tudo, sua vida, sua casa, seu processo criativo… tudo com uma generosidade que eu, de fato, me impressionei.
Ainda nessa sexta passada, uma das pessoas que trabalhou com Freda nos últimos anos de sua vida, comentou comigo: “em duas matérias sobre ela, notei que nada foi dito pela Cia do Mosaico”. De fato, eu fiquei pensando sobre isto nesses dois textos anteriores. No primeiro, apesar de colocar certa ênfase na intencionalidade poética de Freda, seu foco era a denúncia pelo abandono de sua memória e de seu legado material no estado, em especial, no local que abrigou sua mente criadora e que ela intencionava transformar em uma escola de artes, dedicada ao mosaico; no segundo texto, dedicado especificamente a relembrar um pouco da grandeza dessa mulher e artista, fiquei limitado ao espaço da escritura – pois em 5 mil caracteres, é sempre um esforço construir um discussão que se encerre com qualidade.
Mas, em ambos os textos, o caráter colaborativo de Freda Jardim me atravessava. Ai, me dei ao prazer de escrever um pouco mais sobre ela – e é claro que ainda teria muito mais a dizer. Por isto escolhi focar, para encerrar essa série sobre ela, falar a partir de sua generosidade como professora e artista. Vou relembrar meu primeiro dia no Departamento de Artes Industriais do Centro de Artes, em 14 de setembro de 1992. O ambiente não me era de todo desconhecido, pois em abril eu estivera ali fazendo o concurso. Ora, em setembro era diferente, eu era professor. Freda me recebeu e me levou de imediato à Sala de Estamparia, onde estavam algumas pessoas. Foi quando conheci a jovem Rosana Paste – de cujo trabalho escultórico me apaixonei desde o início – também estavam lá, Celso e Jeveaux, além do estimado Renato Caseira. A Sala 3 era uma espécie de extensão da casa de todos, ao mesmo tempo que um ateliê de estamparia. Os fogões para fervura e derretimento de cera me apresentaram iguarias da culinária capixaba e do experimentalismo gastronômico de Freda. Foi ali que, pela primeira vez, experimentei uma feijoada em que se colocava cenoura, banana cozida, repolhos e outras coisas para além dos carnes de porco e feijão preto que eu conhecia.
Freda me apresentava novos modos e mundos. Celso Adolfo resumiu muito bem em um texto que ele escreveu para uma publicação italiana sobre o mosaico: “Il Mondo è un Mosaico. Il Mosaico è um Mondo.” Foi exatamente isto que o convívio naquele departamento (até 2005) e com o círculo de pessoas em torno de Freda me apresentaram.
A energia vital de Freda pedia isto. Talvez por este motivo ela tenha sempre se cercado de jovens estudantes e artistas como Mirian Pestana e Renata Bomfim, dentre inúmeros outros. Mas, hoje, nesse texto final sobre Freda, vou falar um pouco do que eu vivi e vi de mais perto. A Companhia do Mosaico. A imagens em preto e branco de hoje são esse círculo de artistas, camadas de gerações que orbitaram em torno de Freda. Como uma estrela que com seu magnetismo tem corpos celestes girando em seu redor. Um astro que vaga pelo universo da criação, levando consigo outros corpos celestes na magnitude de cada um. Freda era como esse sol, distribuía seu generoso calor para dar calor e criar vida sensível a seu redor. Se, como Celso Adolfo falou, o mosaico é um mundo, Freda era o universo que abraçava esse mundo.
Vou repetir aqui algo que ouvi na graduação, algo atribuído à Louise Bourgeois, que estava sempre cercada de jovens artistas em seu ateliê; ela afirmava que precisa da energia vital deles para seguir com sua obra… que seu corpo era velho e que de certo modo, ela tomava essa vitalidade emprestada.
A imagem acima é um reflexo do ecletismo que era o projeto poético de Freda. A Imagem da Capela de Santa Luzia (antiga Galeria de Arte e Pesquisa, na Cidade Alta), revela uma artista rodeada de duas gerações da Escola de Artes da UFES. À sua força poética, ela seguia adicionando o vigor de novos artistas. Na cena, Jeveaux e Hilal Sami Hilal (ambos já artistas e professores da UFES) e os jovens Rosana Paste, Celso Adolfo e Mac.
A Companhia do Mosaico contemporâneo
Assim como falar de Freda é algo hoje complicado, por falta de documentação, falar do que lhe orbitava não é uma tarefa menos árdua. Como o Sol, uma estrela de magnitude ímpar, sua densidade astronômica lhe fazia centralizar algumas coisas, entre elas, documentos do próprio grupo. Celso Adolfo afirmou, ao ser convocado para me ajudar nesse texto, que Freda sempre “sequestrava” os seus negativos… ela e sua casa ateliê eram o centro de todos. Com a atual destruição em curso nos documentos e da casa de Freda Jardim (já notificados aqui) a memória desse coletivo de artistas capixabas também vai se perdendo. Nos restam poucos índices disto: algumas fotocópias de recortes de jornal, poucas fotografias, algumas sobras pela cidade e, sobretudo, o afeto e os testemunhos sobre este trabalho.
Tomo, para intitular a coluna de hoje, o título de uma mostra da Companhia do Mosaico, na Galeria de Arte e pesquisa: Coisas de uma Arte Fragmentada / Mosaico (1990?), associado ao nome de uma obra de Freda, Um Cachorro que queria ser crocodilo (uma das suas 3 obras na mostra). Em seu depoimento sobre essa mostra Freda Comenta:
A fragmentação é a recomposição e formas criadas pela mente e
transparecerem de intenções, denominando a pureza das emoções que
deram origem a esse grupo. O resultado livre e alegre é uma prova inegável
do poder e da energia das intenções. Almas capazes de pensamentos
espontâneos que criam formas de coisas. Somos tessela fragmentada de um
pensamento.
Não por menos, o Cubo era a principal peça nessa mostra na Capela Santa Luzia. Pois ele era feito à 12 mãos. Era apresentada fortemente à cultura artística capixaba a Companhia do Mosaico, que me parece ser isto: tessela fragmentada de um pensamento estético que visava discutir a arte contemporânea no Espírito Santo.
Do Cubo, de 1990, eu mesmo tenho alguma memória, pois ele ficava nos corredores do CEMUNI I e esteve lá por muitos anos. Tentei, como diretor de Centro que alguém o restaurasse, mas infelizmente, alguém simplesmente o descartou sem comunicar ou perguntar nada a ninguém. Me intrigava aquela combinação sem uma lógica aparente.
Nunca o entendi bem, mas percebia seu valor contemporâneo. Também dele, poucas imagens restam. Muitas possivelmente destruídas junto com livros e outros materiais na casa vandalizada…
A Companhia do Mosaico talvez tenha sido um dos primeiros coletivos capixabas (não posso deixar de mencionar aqui o Balão Mágico, mas este era muito mais um movimento social de caráter artivista – usando um neologismo – e que merece pesquisas sobre si). Rosana Paste declara que “[…] O grupo nasceu por volta de 1987 e a primeira ação do grupo foi essa exposição na Capela Santa Luzia e o primeiro trabalho coletivo foi o Cubo.” Seguimos em um pequeno bate papo informal sobre a Cia do Mosaico.
Cirillo: Rosana, você pode nos falar um pouco de como surgiu a Cia do Mosaico; qual foi a ideia aglutinadora do grupo?
Rosana Paste (RP): Então, a ideia de criar o grupo foi para trabalhar com a perspectiva do mosaico contemporâneo. A ideia surgiu porque nós éramos amigos e a gente conversando pensou nessa possibilidade de se aprofundar no estudo do mosaico contemporâneo. Surgiu dessa união. Assim, porque eu e Celso e Mac já éramos muito amigos; Freda e Jeveaux eram muito amigos. Então, desse encontro nós começamos a pensar nessa possibilidade de criar um grupo. Eu acho que era uma característica de Freda e também de Jeveaux, (nos unimos) para produzir trabalhos, para estudo do mosaico contemporâneo, Freda já era do IMC, e seguir nessa pesquisa acadêmica, artística, com relação ao mosaico.
Cirillo: quando exatamente surge o grupo? Onde e como foi o ritmo de trabalho, ele foi alterado com o acidente quase fatal de Freda?
Por volta de 1987, iniciamos no atelier em Vila Velha e fizemos com o Cubo, nosso primeiro trabalho coletivo.
A Freda veio a sofrer o acidente, o que interrompe um pouco esse trabalho de coletivo. Nesse momento também o Hilal já não vai fazer mais parte do grupo; e mantivemos, então, Freda, Jeveaux, Celso, Rosana e Mac. E aí ela tem a construção da casa dela na Pedra da Cebola, passa a ser nosso ateliê.
A casa na Mata da Praia passa a ser nosso QG, a gente passa a trabalhar lá praticamente todos os dias e isso então nós vamos falar assim de 89 até 2000. Digamos assim, a gente passa a ter lá como espaço de trabalho permanente. Quando não era para fazer um mosaico da companhia, era porque a gente estava lá trabalhando com outra coisa. Em, 1992, na Rússia, o primeiro encontro da IMC, ela não estava tão bem pra viajar e nós sorteamos quem iria […] o Celso Adolfo nos representou, já como companhia do Mosaico.
Depois, em 1994, a gente vai para o Egito, também no Congresso, o Congresso Internacional do Mosaico Contemporâneo, que é a Associação Internacional do Mosaico Contemporâneo, que é a IMC, que sediou o Congresso no Egito. Depois, em 1996, nós fomos ao Japão, que também sediou o Congresso. Depois, tivemos quatro anos aí, e ele foi à Ravena em 2000, porque teve um problema que o país que ia fazer não conseguiu organizar, não lembro qual seria, assim, em 1998, e aí a Dona Isolda, que era presidente da IMC, leva o Congresso para a Ravena.
Nesse momento de 2000, vai a trupe toda para Ravenna. Nesse momento, a Freda já está com a casa, com a escola construída, a Mirian também vai conosco para o congresso, porque ela seria uma das pessoas a trabalhar na escola junto com a Freda. Freda já está aposentada nesse momento, eu já sou professora da universidade… enfim, o Celso e a Mirian seriam as duas pessoas diferentes junto com a Freda.
Cirillo: e nesse momento que eles decidem trazer o congresso da IMC para o Brasil em 2002?
Sim. E daí, em 2000, nós votamos para trazer o Congresso para 2002, para Vitória, e fizemos o Congresso em 2002 em Vitória. Só que Freda falece 40 dias depois de chegar de Ravenna. Nós honramos com o nosso compromisso e fizemos o congresso que aconteceu no antigo hotel Pôr do Sol. As pessoas todas ficaram hospedadas lá, nós fizemos na Universidade Federal do Espírito Santo e no galpão de escultura nós temos os painéis ainda que foram construídos coletivamente.
Cirillo: Rosana, como convivem o mosaico contemporâneo e o tradicional vindo da Escola de Ravena?
Interessante essa ideia do mosaico contemporâneo. Porque a ideia do mosaico contemporâneo é a materialidade, mas a linha do mosaico de Ravenna, a Freda nunca deixou de persistir nela enquanto professora de mosaico. A linha do mosaico de Ravenna é uma linha tradicional, é como se constrói a linha no mosaico. Isso é uma particularidade que quem não faz, meu amigo, não tem jeito. O mosaico não vai ser nunca um mosaico com equilíbrio, com uma dinâmica, com uma possibilidade de construção mesmo.
Sobre essa linha de Ravenna, essa linha tradicional do mosaico, por mais que nós trabalhássemos com materialidades com as pedras brasileiras, com escória, cada um foi buscando a sua história para adicionar a esses elementos, ao elemento do mosaico contemporâneo. Mas, a linha tradicional de Ravena, Freda, nunca deixou de persistir enquanto um conhecimento técnico necessário e fundamental para a produção do mosaico.
Cirillo: o Celso afirma que a Lei Namy Chequer de Vitória, que obriga os edifícios maiores de 1000m2 a terem uma obra de arte em suas dependências, vai ter um papel importante no legado da Cia do Mosaico no estado. Você pode comentar isto?
[…] e por conta da lei Rubem Braga, desculpa, por conta da lei Namy Chequer, nós começamos a fazer propostas para a construção de trabalhos que pudessem ficar nos prédios. E a nossa ideia era que a cidade ganhasse. Desde que a gente começou a trabalhar, de que os painéis não fossem internos, mas que pudessem ganhar o prédio, os moradores, mas a cidade também.
Então essa foi a filosofia da Companhia do Mosaico quando a gente começou a fazer os painéis. Em Bento Ferreira a gente tem dois, em Mata da Praia a gente tem dois, na Praia do Canto a gente tem dois, só aí já são seis, que eu estou me lembrando agora. Tem a Cruz do Papa e tem outros que eu não estou me lembrando agora. E sempre coletivo, sempre nessa perspectiva da materialidade.
Legado da Cia do Mosaico e o mosaico contemporâneo
Segundo Celso Adolfo, “[…] a companhia do mosaico fez muito para construtoras, principalmente […] para Lorenge fazíamos painéis externos. Muita coisa legal foi feita.” E, em conversa com membros do grupo, uma das construtoras da época comprou a ideia de colaborar para ao formação de um acervo privado (dos condomínios) com acesso público pelas ruas de Vitória. Deste modo, algumas obras ainda podem ser vistas pela cidade. Outras, atualmente escondidas por muros altos que atestam o crescimento da violência urbana (da qual a casa e o acervo de Freda tem sido vítimas). Mas, espero que em breve a gente possa ter esse coletivo de artistas capixabas mais estudados, pois ele contribui em muito para a arte e a cultura regionais, como no percurso pessoal dos envolvidos.
Na UFES, graças aos esforços de Neusa Mendes, então Secretária de Cultura da UFES, foi possível inaugurar a Capela do Senhor Jesus. Um espaço ecumênico do Centro de Vivências, ainda podemos ter acesso a partes do trabalho desse coletivo de artistas. Os vitrais são ainda a presença e a força desse ideal de Freda e seus amigos que deixaram marcas expressivas na arte capixaba. A Companhia de Mosaicos, formada por Freda Jardim, Celso Adolfo, Jeveaux e Rosana Paste foi responsável pelos vitrais da janela.
A perda de Mac e de Jeveaux foram marcos que se somaram à morte de Freda e enfraqueceram a força dessa tradição ancestral na arte em sua mediação com a cidade. Mas, temos, sem dúvida, na figura de Celso Adolfo (o seguidor dos caminhos abertos por Freda) um artista, mosaicista no termo básico do conceito, e o melhor especialista em restauro de painéis e mosaicos em território capixaba.
Há ainda uma forte contribuição na carreira artística de Rosana Paste e Hilal Sami Hilal… Freda deixou rastros!
A companhia do Mosaico Contemporâneo é a evidência de que arte contemporânea e tradição podem conviver juntas!!
Revisão: Giuliano de Miranda