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21 de janeiro de 2025
terça-feira, 21 de janeiro de 2025
José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.
A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade de cada um deles e não reflete a posição de ES Hoje

POR ONDE ANDAM NOSSAS LIVRARIAS? Algumas reflexões sobre ler e escrever

Quando decidi ser pai, lembrei claramente do que aprendi quando criança: o valor do conhecimento, da leitura e da fantasia. Minha filha cresceu ouvindo histórias e lendo sobre a cultura e folclore brasileiros. Mesmo quando ela queria histórias de princesa, eu achei um rico material do Maurício de Souza que contextualiza cada fábula com a turma da Mônica. Minha filha conheceu princesas gulosas, como a Magali, príncipes que roncavam, como o Encantado Cebolinha. Enfim, a literatura, a contação de histórias e a fantasia se desenvolveram com ela e nela, criando um gosto ímpar, nessa geração, por livros e por livrarias; assim como meu pai fez comigo. Eu não sabia por onde ir, pois não há caminhos traçados para criar filhos, apenas fazemos o que acreditamos ser melhor. Escolhemos um, entre vários caminhos, várias rotas possíveis.

POR ONDE ANDAM NOSSAS LIVRARIAS? Algumas reflexões sobre ler e escrever
Frame de Alice no País das Maravilhas. Estúdios Disney, 1951

Desde que voltei de Liverpool (RU) para Portugal, tenho pensado muito sobre os caminhos, como sociedade, que escolhemos. Às vezes sinto que parecemos Alice no País das Maravilhas, sem saber que caminho tomar. Que rotas seguir para voltar para casa. Caminhos que nos levam a desbravar desconhecidos percursos – ora demasiado grandes para nós; ora demasiadamente pequenos, sem termos chás mágicos para tomar; menos ainda um gato maluco para nos guiar. Estar na Inglaterra me fez deparar com os entrecruzamentos de Lewis Carroll e as desventuras da literatura fantástica inglesa. Aliás, somente agora soube que Lewis Carroll era o pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, e que a obra foi inspirada nas conversas dele com a filha de um amigo, que aliás se chamava Alice.

Eu era criança quando assisti pela primeira vez esse clássico tornado animação pelos Estúdios Disney (1951). Vi o filme antes de ler o livro. Lewis Carroll havia sintetizado toda a fantasia infantil e os desafios da imaginação. A literatura nonsense de Lewis desafiava a narrativa clássica das histórias infantis. De certo modo, o projeto de Walt Disney deu conta de compartilhar o espírito do livro. Não poderia deixar de lembrar disto ao cruzar as ruas daquela cidade. O poste de direções em Liverpool me chamou a atenção, como se eu fosse aquela criança que vê parte de suas fantasias realizada. Aliás, a sinalização de rua inglesa é como nos filmes e desenhos: um carrossel de indicações. Claro, que na realidade, mais organizadas, incluindo até o tempo da caminhada até seu destino. Quase uma programação que faz a temporalidade inglesa parecer precisa. Como se não houvesse fraturas e desvios da atenção nos caminhos…

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Sinalização de rua em Liverpool, 2024. Foto: José Cirillo

Mas, passado o sobressalto visual da sinalização e da recepção afetiva disto, me chamou a atenção o prédio ao fundo: uma livraria. Aliás, a Waterstones, uma das mais espetaculares livrarias do Reino Unido.

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Waterstone, vista externa e interna, em Liverpool, 2024. Foto: José Cirillo

Não procurava nada. Apenas apreciava a paisagem urbana que tanto me apaixona. Achei por acaso, pois no frio daquela manhã de domingo, eu queria mais mesmo um café, ou melhor, um chocolate quente, algo para aquecer o corpo. Fui então nessa direção e me surpreendi com o que vi. Dois andares de livros, um excelente pátio de café e alimentação. Mas, sobretudo, um local que você tem acesso à mais diversificada bibliografia sobre todos os temas.

O vídeo que se segue apresenta um pouco do meu fascínio pelo espaço e a sua imponência num dia frio e chuvoso típico do outono inglês. Embora eu tenha evitado filmar as pessoas, é possível ter uma ideia da frequência desse local, em pleno domingo.

Essas imagens me impressionaram e fiquei com a sensação de que deveria escrever sobre o nosso hábito de ir a livrarias. Talvez mesmo o de ler. Mas, os dias se passaram e o projeto desse texto que compartilho com vocês ficou parado. Pelo menos até ontem, quando me deparei com uma outra livraria aqui no Porto – a qual, de certo modo, foi parte dos espaços da minha formação na escola de artes e mesmo como professor: a Livraria Bertrand.

POR ONDE ANDAM NOSSAS LIVRARIAS? Algumas reflexões sobre ler e escrever
Livraria Bertrand, no Norte Shopping, Porto, Portugal, 2024. Foto: José Cirillo

Novamente um fim de semana, frio e chuvoso; um shopping cheio – o que não em nada de anormal em um fim de semana. Mas, novamente, a imagem de um contingente de pessoas dentro da livraria, olhando, comprando… adultos e crianças… entrando e saindo como de uma loja de alimentos… alimentos da alma, nesse caso.

A Bertrand é considerada pelo Guiness Book a mais antiga livraria do mundo em funcionamento. Claro que aquela que se localiza no Chiado em Lisboa. Inaugurada em 1732, foi destruída no terremoto de 1755, mudou de local e 18 anos depois, retornou à reerguida Baixa Pombalina, onde existe até hoje. Sua filial no Brasil foi criada para ser uma importadora e distribuidora de livros, tendo sua primeira incursão editorial em 1953, sendo que depois disto lançou outros escritores e expandiu seu catálogo. Existiu de modo autônomo até os anos de 1996, quando foi comprada pelo Grupo Record. Hoje como nome, funciona apenas no site como Grupo Editorial Record.

POR ONDE ANDAM NOSSAS LIVRARIAS? Algumas reflexões sobre ler e escrever

Mas, o que faz uma livraria, ou várias delas como tenho visto por aqui, permanecerem em tempos de literatura digital? Fico me indagando sobre isto a cada livraria que passo ou entro aqui. Elas estão vivas.

Por que estamos fechando nossas livrarias?

Essa pergunta não se cala em mim nesses últimos dias. Sei que o livro digital e os arquivos em formato pdf facilitam muito a vida, em especial nossa nas universidades, tentando facilitar a vida dos nossos alunos. Penso que a responsabilidade, de certo modo, também é minha.

Quando lembro da minha biblioteca, percebo que grande parte dela eu adquiri como aluno da graduação em Artes, tínhamos uma livraria cuja dona, a Alcione, encomendava os livros que a gente queria, teóricos ou de história da arte, ou mesmo, biografias de artistas nacionais e internacionais. Mais tarde, o Jorge, com sua banca nos corredores da universidade, nos trazia e apresentava a Taschen e outras editoras internacionais com livros em línguas que eu sequer falava. O mundo se abria para a gente em tempos sem internet, tempos em que as folhas cheirando a tinta tipográfica nos encantava.

Em Vitória, também tínhamos nossos recantos de bons e ricos livros. Também havia o Rocha, que levava aos corredores dos CEMUNI’s no Centro de Artes a magia impressa dos livros editados pelo mundo. Em algum momento, esse mundo mágico dos livros parece ter desaparecido. Eu mesmo comecei a separar textos em formato digital para evitar que meus alunos usassem o fato de não conseguirem o livro para justificar não ter feito a leitura necessária… talvez o remédio para uma doença tenha criado outra…

Minha filha, a quem sempre interessou as livrarias, lamentou a cada uma que fechava em Vitória… não mais consegue ir a um local, com calma folear, sentar e deixar-se viajar em possibilidades e inventividades.

O mundo tecnológico facilitou muito da nossa vida, mas parece estar matando modos práticas, saberes e fazeres que somente a literatura nos permitia. Nas poucas livrarias que restam, vemos os livros de autoajuda, de culinária e biografias de mitos anônimos tomarem o lugar dos escritores que cultivam nossa alma criativa e nos permitem vagar como criança em mundos impossíveis. Parece que não mais suportamos tomar nosso tempo a folear páginas. Nosso tempo contemporâneo nos mantem por horas na frente de uma tela vendo o mundo sendo reduzido ao tempo instantâneo de um reels, de um story… de um post qualquer que nos entrega uma visão pronta de mundo…nos afastamos cada vez mais do conhecimento construído pela percepção crítica.

Não que a comunicação digital seja um veneno contra nossas livrarias e nosso hábito de ler, afinal, mesmo antes dela, o percentual de leitura da nossa sociedade já era inexpressivo se considerarmos outros países latinos. Mesmo grandes autores brasileiros têm sido mais lidos fora que dentro do nosso país. Alguns especialistas dizem que esse hábito de leitura se deve às condições econômicas do país. Mas lembro que a maioria do que eu li até minha juventude foi sendo sócio da Biblioteca Municipal. Eu não comprava, pegava emprestado num espaço mantido pelo poder público que se preocupava com a formação crítica e inventiva de seus cidadãos.

Esse meu gosto por ler, alimentado pelas bibliotecas públicas e seu acervo diversificado, me levou a adquirir os meus livros. Me levou a alimentar os visionários donos de livrarias para manterem esses espaços de vivência e compartilhamento da nossa cultura.

Vejo, acompanhando a Biblioteca Central da nossa Universidade, a UFES, que a cada dia ela está mais vazia…

Ainda espero que as livrarias, ao modelo das salas de cinema que se adaptaram em tempos de vídeos e streamings, se reinventem e retornem para seguir alimentando nossa alma criadora.

A experiência em Liverpool e em Porto ou Lisboa tem evidenciado que elas, as livrarias, não se rendem aos tempos de literatura digital.

Nós que as estamos matando!

Revisão: Giuliano de Miranda

José Cirillo
José Cirillo
José Cirillo é doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES,) onde é professor titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes. Pós-doutor em Artes pela Universidade de Lisboa. Foi Pró-reitor de Extensão da UFES (2008-2014); Diretor do Centro de Artes (2005-2008). Atua como coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA), desenvolvendo pesquisas sobre a arte e a cultura capixaba.

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Comentários
  1. Ainda bem que você escreveu as respostas às suas indagações. Se um livro não é lido em 5 anos na Biblioteca Central ele vai para o Arquivo Morto. Por isso ela está vazia. Qdo professores de Biblioteconomia doutores são a favor de E- Books e contra os livros impressos? O governo federal quer implantar o Drex em 2025 para substituir o papel moeda. Fui à Biblioteca Central ontem e me deparei com ela praticamente vazia. O vai – vem de alunos não existe mais. Um lugar destituído de Amor, Energia do conhecimento etc. Tornou-se uma selva de pedra.

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