Esta é a primeira coluna desse período que estou chamando de Conexão Lisboa. Meu desafio nessa viagem de pesquisa é: como manter esse espaço semanal no qual temos conversado, estando por dois meses fora do estado e do Brasil. Um desafio, pois me proponho desde o início falar sobre a memória, a cultura, a arte e a identidade capixaba. Encontrar pontes em além mar não me parece a situação mais simples. Embora, da última vez me coloquei a falar da viagem transatlântica de Sacadura Cabral e Gago Coutinho, por ocasião do centenário da Independência do Brasil. Por minha sorte, eles atracaram por dois dias em Vitória com seu hidroavião, antes de seguirem para a então capital nacional, a cidade do Rio de Janeiro, onde as celebrações em si ocorreram. Dai, tomo para mim uma reflexão de Fernando Sabino (2006, p.145), para pensar os meus caminhos novos:
De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre
começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que
seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho
novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do
sono uma ponte, da procura um encontro.
Esse novo período em Portugal é um desafio, uma fratura no meu percurso. Uma fresta por onde entrevejo possibilidades. Tempo em que busco novas parcerias e destinos. Novas Conexões. Resgato, outrossim, antigos pertencimentos.
Minha primeira empreitada nesse novo território provisório vai ser resgatar uma egressa do Centro de Artes, minha orientanda de conclusão de graduação e Mestra em Artes pela Ufes. Uma conexão com Lisboa. Lembrei, ao revirar minhas lembranças em busca das tão importes conexões entre o que escrevo nessa coluna e as minhas vivências pessoais. Thaynã Targa está ali. Uma ponte entre minha memória e minha espera.
Essa artista e pesquisadora encontra-se hoje em terras lusitanas em um processo de continuação de sua formação. Segue atuando como artista e torna, para mim, o elo inicial dessa série de textos transatlânticos para esta coluna.
Em parceria com Lais Dantas, Thaynã investigava o tempo e a percepção sensível do corpo que se move na imensidão urbana. Não se move nos grandes espaços da cidade, mas nos microssistemas estéticos dos detalhes, um corpo preso em seus apartamentos. O frame capturado de suas performances de 2014 é apenas fragmento do sensível, de um corpo que se refugia na estesia. Para ela, “a pressa e o receio nos tomam como casa e esquecemo-nos da casa da nossa alma, nosso corpo.”
Abro a janela do meu quarto e me deparo com uma bela paisagem,
meus olhos enxergam doces nuances composta pela luz do sol nas
copas das árvores, que são de um número razoável, banquinhos
brancos que constantemente são pintados junto aos canteiros que são
cheios de grama rasa e algumas flores, quadra de esportes, parquinho
com areia e brinquedos, enfim, uma praça bem cuidada, organizada e
de agradável visão.
Para Thaynã, cuja pressa parecia banida de seu corpo e de sua fala, o habitar a costa brasileira não foi suficiente e ela aventurou-se nos novos caminhos. Qual miúda travessa, ela vai se colocar também no cenário português das artes. Não sozinha, mas em um coletivo. Aliás, grande parte de sua produção em Vitória já era compartilhada. Ela não pensava isoladamente, mas como um corpo já em rede. Se tomamos a fala acima, de 2014, veremos que esse intimismo olha para o entorno, embora preso nas janelas de casa.
É esse olhar para fora que me chama a atenção em seus recentes trabalhos em terras lusitanas. E, claro, me fizeram toma-la como ponto de partida de minhas conexões nesse território de Fernando Pessoa e Amália Rodrigues. Qual cantora de fado, o processo criativo de Thaynã vaga entre os dolorosos sentimentos da nostalgia e os estribilhos do cotidiano urbano revisitado. Qual as janelas de sua graduação, a luz e o ar passam pela fresta; segundo ela, essa fresta é “uma lacuna que faz convite à uma espiada curiosa e que aguça a imaginação para a descoberta.”
Essa egressa de terras capixabas segue sua formação em Lisboa. Portugal que recebe. Movimento reverso que desafia a lógica colonialista. Em Portugal, para além de artista ela assume o papel de curadoria e produção cultural. Articulada com dois outros artistas, forma o Coletivo Gabirú, tendo como parceiros o brasileiro Fábio Curi (de Recife) e o chileno Pablo Diaz.
Como artista, produtora ou curadora, Thaynã segue serpenteando pelos vestígios visuais e sonoros da cidade, como um corpo que desliza nas frestas que se abrem a um corpo sensível que habita a multiculturalidade de um estrangeiro que se faz nativo nas terra de Lisboa.
Serviço:
SABINO, Fernando.O encontro marcado. (Romance) 82. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006 (Edição comemorativa aos 50 anos de publicação).