Recentemente visitei um grande equipamento cultural que já foi palco de muitos encontros e festivais de arte, quando ninguém olhava para aquele prédio. Telhado caindo, morcegos habitando todos os lugares. Por anos, o esforço de um grupo de professores do Centro de Artes da UFES, capitaneados por um artista professor – aliás um dos nossos mais expressivos escultores -, tentava manter o prédio.
De fato, ver aquele edifício restaurado é um prazer pois é parte de nossa memória e história, remontando os primeiros momentos da colonização portuguesa. Berço também de nossos primeiros passos na instrução formal, aos moldes coloniais, mas também palco de alguns massacres dos povos originários para a consolidação dos “novos tempos” da coroa portuguesa no Brasil. O que me preocupa é a ação colonizadora do colonizado.
O que eu quero dizer com isto? Ora, o que foi o processo de colonização senão uma espécie de gentrificação das terras de Pindorama? O que aliás, nossa história parece nunca se lembrar que esse litoral leste da América do Sul era ocupado pelos povos originários. Os mesmos que foram muito massacrados na foz do Rio Apiatitanga (para recordar sua origem), hoje conhecido como Rio Reis Magos, restando, onde agora, poucos restam que nos lembram esse nosso passado indígena.
Mas, quando digo ação colonizadora dos colonizados quero dizer que quando assumimos alguma posição de poder, de decisão do destino coletivo, parece que nos esquecemos das nossas origens e tomamos o lugar do invasor, do colonizador. Agimos como ele.
Desprezamos as particularidades locais e imprimimos a nossa nova identidade nos modos de habitar e viver do local. O que implica em pouco tempo, numa sensação de nãopertencimento e, consequentemente, de evasão dos antigos moradores do local.
Mas, diga-se de passagem, essa restauração/reforma do conjunto arquitetônico e histórico dos Reis Magos, em Nova Almeida é espetacular. A dinâmica de visitação com salas interativas e tecnológicas, a visita guiada, a exposição permanente com centro de referência jesuíta no Brasil é muito interessante, embora na obra que representa esses assentamentos, eu tenha sentido falta da Igreja de Araçatiba – tão ao nosso lado e tão esquecida (embora atualmente em processo de restauração pelo IPHAN). Para quem viu aquele teto de Reis Magos caindo, nos anos inicias de 1990, viu o esforço de um professor e de uma equipe da UFES para pintar, recuperar, trocar telhas, limpar aquela residência para que o Festival de Verão ocorresse, de fato é gratificante perceber que o imóvel não vai mais, possivelmente, chegar naquele estado de abandono físico que vivenciamos – mas pode instaurar-se o abandono identitário por parte dos moradores.
Entretanto, algumas coisas me incomodaram, como, por exemplo, ver uma parede centenária ser demolida para abrir uma porta para dar acesso à ideia de acessibilidade (que poderia ter sido feita pela porta principal que, aliás passa mais de uma cadeira ao mesmo tempo), com um elevador de acessibilidade no pátio interno do prédio. Mas, ao ser colocado onde foi, além de macular o claustro que era a residência jesuíta, vai, entretanto, permitir ao visitante, postado em uma bela varanda de vidro, deleitar-se com a espetacular vista da baia do rio. O binômio apreciação e vigília, foi abandonado pelo espetáculo da paisagem.
Ora, esta vista era dada nas janelas internas, com seus pequenos assentos onde os padres jesuítas vigiavam o canal e protegiam a evasão ou a invasão do território recém conquistado. Romper essas paredes é mais que apenas adaptar o prédio, é destitui-lo de sua finalidade como claustro. Não conheço o conceito do projeto arquitetônico desse “restauro”, mas conheço um pouco desse processo que afasta um edifício das pessoas que asseguraram sua existência por essa centena de anos.
A gentrificação começa com o afastamento afetivo das pessoas que habitam um local; segue com o desmantelamento de sua identidade e projeção simbólica com o lugar; continua com o afastamento dos saberes e fazeres locais e com a implementação de um modelo de artesanato que vende bem para os turistas; segue com a reforma e alterações das edificações no entorno e com a implementação, posterior, da especulação financeira e imobiliária. E finaliza com a ocupação do território por um outro sujeito que habita o ponto turístico, mas não pertence à cultura que o edificou como patrimônio.
Vi a semente disto nessa visita ao Centro de Interpretação Aldeia dos Reis Magos.
Conversando com moradores, ouvi dizerem que objetos de referência foram levados do equipamento cultural pelo IPHAN, mas eles não sabiam para onde; que apenas puderam ter objetos na loja de Artesanato, aqueles que atendiam as expectativas do projeto… e assim por diante…
Para o turista, o lugar ficou melhor que antes; e quando a cantina estiver funcionando, ainda terão como se alimentar e comprar souvenirs , enquanto visita a igreja. A economia criativa se coloca em movimento. Mas a que custo?
O entorno ainda vive, mas por quanto tempo? Ele Sobreviveu ao período colonial; atravessou a monarquia e o império; cruzou a República; persistiu durante a Ditadura Militar; seguiu como sempre isolado na redemocratização. O entorno sobreviveu porque ele era afetivamente significativo aos moradores desse entorno. Mas será que com a espetacularização desse equipamento cultural centenário, esse entorno simples que mantem ainda o formado colonial da aldeia jesuíta primordial, sobreviverá? Ares de gentrificação pairam sobre aquela comunidade, como uma tempestade que se forma em alto mar, mas que para a qual, os aldeões não estão preparados.
Temo também por Araçatiba!
ESSE COLUNISTA É MUITO BOM.
TRAZ IDEIAS QUE NÃO ESTAVAM NO DEBATE.
A RESTAURAÇÃO FOI MUITO ELOGIADA. ESSE TEXTO, PORÉM, FAZ PENSAR.
PARABÉNS!