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7 de novembro de 2025
sexta-feira, 7 de novembro de 2025
João Gualberto Vasconcellos
João Gualberto Vasconcellos
João Gualberto Vasconcellos é mestre e professor emérito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Doutor em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciência Política de Paris, na França, Pós-doutorado em Gestão e Cultura. Foi secretário de Cultura no Espírito Santo entre 2015 e 2018.
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Cidade presépio

Dois sentimentos me fizeram voltar a pensar em um antigo objeto de minhas reflexões. O primeiro foi o lançamento do livro Carmélia Maria de Souza: desesperada e lírica, com textos daquela grande cronista capixaba reunidos e selecionados por Renata Bomfim, uma estudiosa muito criteriosa do nosso universo literário. O segundo foi uma longa conversa com a jovem e brilhante intelectual Tamara Lopes, doutora em Arquitetura, que vem de defender uma tese na qual a nossa sempre presente Carmélia também é estudada – além de muito mais. Voltarei a falar de Tamara oportunamente.

O antigo objeto de minhas reflexões, a que me referi acima, é o momento em que Vitória deixa de vestir sua velha roupagem de cidade presépio e passa para um momento mais ousado e menos provinciano de sua vida como o principal centro urbano do Espírito Santo. Isso ocorre em 1967, quando Setembrino Pelissari é o prefeito e Christiano Dias Lopes o governador. O Espírito Santo, então, acompanhando a modernização conservadora pela qual passava o Brasil, também se moderniza. Materializávamos entre os anos 1960 e 1970 o velho sonho da industrialização capixaba, do asfaltamento das principais rodovias, da expansão da energia elétrica e das novas comunicações.

Ultrapassada a predominância da cultura do café e sua aristocracia, que floresceu no império e na primeira república, mudaram as elites dirigentes e a capital do Espírito Santo deixou seus ares provincianos, abandonando a planta de cidade presépio. O desenho de novas avenidas, como a Nossa Senhora dos Navegantes, criou espaços urbanos tomando parte de áreas antes ocupadas pelo mar. Novos prédios cresceram verticalmente a cidade e houve a migração progressiva do centro em direção à região norte. O Shopping Vitória, inaugurado nos anos 1990, consolidou essa mudança, trazendo o comércio dos setores de classe média para a Enseada do Suá.

Escrevi sobre essas mudanças, sobretudo nos estilos de vida antes tão provincianos, em um livro que organizei com a participação de dois importantes intelectuais: Carol Abreu e Janes De Biase Martins, um valoroso historiador que infelizmente nos deixou logo após a publicação do trabalho. A obra foi a primeira financiada através da então recém-criada Lei Rubem Braga, da Prefeitura de Vitória. Foi publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, com honrosa apresentação de Renato Pacheco, presidente do órgão na época.

Penso em Carmélia quando me lembro da nova geração de jornalistas e animadores culturais que passaram a povoar Vitória. Nomes da importância da própria jornalista que tanto cito, ou de  outros grandes como Claudio Bueno Rocha, Milson Henriques, Aprigio Lyrio, Amilton de Almeida. A renovação nas artes e nos costumes da cidade causada por um novo contingente de novos personagens foi muito grande.

Aos poucos a cidade perdia seus ares de presépio para ganhar uma nova dimensão, que em muitos momentos caminhava em direção contrária à proposta da cidade mais tradicional que saiu da república do café. Seus grandes prédios eram inacessíveis aos pobres e sua ausência de preocupação com políticas sociais e culturais mais densas era evidente. Os setores artísticos e intelectuais de classe média, com as suas novas expressões, ganharam a cena.

Junto a essa nova configuração vieram as dificuldades de mobilidade no trânsito e o grande pesadelo da violência. Vitória foi tomada por levas de camponeses empobrecidos pela erradicação dos cafezais – um pesadelo econômico, social e político – vindos do interior do estado, e mesmo alguns de estados vizinhos. Houve um empobrecimento da paisagem urbana. Para os novos entrantes só havia as palafitas dos manguezais ou a elevação dos morros, além de pior educação, pior saúde pública, poluição do ar, do mar, de tudo. Foi o fim completo do bucolismo que encobria a pobreza da cidade presépio, como também da modernidade aristocrática da primeira república.

A própria identidade da ilha foi alterada. Começaram a ser usados termos como Grande Vitória e depois Região Metropolitana da Grande Vitória, que passou a envolver  municípios vizinhos, sobretudo Vila Velha, Serra e Cariacica. Os problemas se expandiram junto com a expansão territorial. Essas foram, como o nome do livro indica, as trajetórias de nossa cidade, desde a fase colonial até uma construção totalmente focada no econômico e na lógica de massas.

O nosso centro histórico é bem o exemplo das consequências dessa trajetória. Abandonado e relegado a segundo plano, mostra como o país dos novos ricos trata os traços de seu passado, as marcas de seu crescimento, a identidade e a memória coletiva. Parece que ficamos cada vez mais longe de nossa essência, ao passo que nos aproximamos  de um ideal de cidade que nos remete a um arremedo de Miami ou  Dubai. Até mesmo os traços rebeldes da geração dos anos 1960 e 1970 perderem-se, em grande parte, no tempo.

João Gualberto Vasconcellos
João Gualberto Vasconcellos
João Gualberto Vasconcellos é mestre e professor emérito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Doutor em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciência Política de Paris, na França, Pós-doutorado em Gestão e Cultura. Foi secretário de Cultura no Espírito Santo entre 2015 e 2018.

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