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17 de janeiro de 2025
sexta-feira, 17 de janeiro de 2025
Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV
A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade de cada um deles e não reflete a posição de ES Hoje

“Ainda estou aqui”: reflexões sobre um filme e seu contexto

Essa semana assisti no sempre interessante Cine Jardins o filme “AINDA ESTOU AQUI”, premiado longa brasileiro estrelado pela fantástica Fernanda Torres, que já vem colhendo merecidos prêmios pela sua brilhante atuação. Como ocorre toda vez que um filme brasileiro é aclamado pela crítica internacional, os holofotes se acendem e as pessoas correm às salas de projeção algumas realmente interessadas na obra, outras curiosas para conhecer os “porquês” de tantos elogios e perspectivas até do primeiro “Oscar” brasileiro (certamente há quem já imagine a notícia da merecida premiação no Jornal Nacional, com aquela musiquinha “tã-tã-tã” que ficou famosa nas vitórias de Ayrton Senna) e até mesmo outras que jamais perderiam a oportunidade de falar as costumeiras baboseiras sobre a leu Rouanet, impressionantemente obtusos de sua importância para a cultura nacional.

Em relação a essas últimas, sempre me ocorre a frase “ninguém salva alguém de sua própria ignorância”. É a vida. Sigamos.

“Ainda Estou aqui” narra a vida de Eunice Paiva, esposa do ex-deputado federal Rubens Paiva, engenheiro brasileiro que foi sequestrado, torturado, assassinado e “desaparecido” a mando da quadrilha que protagonizou o Golpe Militar de 1964, jogando o Brasil naquilo que alguns saudosos louvam como “período patriótico de milagre econômico e proteção dos valores da família, coisa e tal”, mas que os fatos mostram ter sido o momento de maior violência e arbítrio de nosso país. Tudo uma questão de ótica, claro. Ou de ética.

Para quem não se preocupa, pouco se interessa em conhecer a História do Brasil ou prefere as narrativas ufanistas que pintam e louvam criminosos cruéis como heróis, Rubens Paiva foi apanhado em casa, no meio de uma manhã do ano de 1971, num Brasil presidido pelo General Emílio Garrastazu Médice, a quem um amigo meu, convicto patriota, admira quase 100%, ressaltando que ele errou quando proibiu a venda, aqui, da revista Playboy, terminando a frase com aquela risadinha que, suspeito, ainda integre o rol de instrução de alguns quartéis nacionais.

Os tais sequestradores apareceram na casa da família “Paiva” sem ordem judicial, naquela época dispensável por força de um dos Atos Institucionais minutados e publicados na época – e não apenas restrito aos arquivos de algum ex-ministro, entregue por sabe-se lá quem, e sabe-se lá porque – que também cassaram parlamentares e até Ministros do STF, sonho dourado de muita gente boa por aí, e suspendeu o Habeas Corpus, dentre outras atrocidades justificadas como necessárias à garantia da liberdade dos brasileiros, ameaçados “pelo comunismo, pela dissolução dos lares, pela corrupção moral” e outras arengas do gênero, que volta-e-meia impregnam discursos tocados como berrantes para tanger gerações de hordas bovinas que se sucedem coonestando um pensamento muito interessante e aplicável à espécie: “as ovelhas, coitadas, viviam com medo do lobo que lhes diziam mau, e perverso, mas terminaram sendo comidas pelo pastor”.

Pois Rubens Paiva, um dos muitos brasileiros que ousavam discordar das iniquidades praticadas por fardados à soldo de suas conveniências e de interesses econômicos e políticos travestidos de dignidade, foi levado para o DOI-CODI do 1º Exército, no Rio de Janeiro, para “averiguações”, e depois sumiu, desapareceu, como outras centenas de brasileiros cujos corpos jamais foram localizados e devolvidos às suas famílias, prática ainda mais covarde e delinquente do que sequestros, torturas e assassinatos cometidos por agentes públicos contra pessoas sob custodia ao Estado.

No dia seguinte a esse crime – e o filme narra com crueza de detalhes – Eunice e sua filha, uma adolescente, foram também levadas para “averiguação”, ficando ela alguns dias como hóspede não registrada de uma masmorra, ouvindo gritos de dor de pessoas torturadas como o foi Rubens, e depois foi devolvida, passando muitos anos refém do terror, assim como seus filhos, todos crianças, que tiveram, cada um a seu tempo e à seu modo, de aceitar a condição de morto de Rubens, chegando ao requinte de comemorarem, 25 anos depois, o favor legal do atestado de óbito presumido.

Eunice, magistralmente interpretada por “Fernandinha”, “Ainda estou por aqui” revela ter sido, nas décadas passadas entre o assassinato do marido e sua morte, uma mulher que pode servir de sinônimo ao termo dignidade, desfazendo-se do que tinham para criar os filhos, formando-se em direito e protagonizando uma carreira brilhante de advogada, especializada e reconhecida como brilhante defensora dos direitos humanos, que alguns chamam de “direitos dos manos”, dentre eles indígenas, aquele pessoal pelado que vive na floresta encruando o desenvolvimento do país, dormindo e defecando sobre as riquezas da Amazônia, que, sustentam esses mesmos alguns, poderiam produzir um novo “milagre econômico” se exploradas por competentes e modernos empreendimentos, todos eles patriotas, claro, ainda que custassem a morte de milhares de pessoas por fome e doenças, já que para tudo há um preço a pagar, e, olhando pelo prisma da meritocracia, sacrifícios, principalmente os dos outros, são plenamente justificáveis desde que se atinjam as metas econômicas que um tal “liberalismo”, outra palavra festejada pelos mesmos analfabetos que também papagaiam outras cujo significado não fazem a menor ideia, impõe.

O filme, para quem gosta deles com conteúdo e acha que a Lei Rouanet não é um mecanismo criado pelo “Foro de São Paulo” para financiar terroristas ou desviar dinheiro do BNDES (outros sons que saem do tal berrante), vale cada segundo, terminando com a interpretação magistral de Fernanda Montenegro, dois minutos sem dizer uma palavra sequer, mas pronunciando com os olhos um dos discursos mais espetaculares que já escutei sem ouvir, desafiando-nos a refletir sobre a capacidade que alguns seres humanos têm de odiar o que nunca conheceram, de repetir o que não compreendem como se verdade absoluta fosse, de defender a dispensabilidade da vida de quem não comunga consigo das mesmas convicções, de menoscabar diferenças julgando-se ungidos à felicidade, e de justificar atos criminosos ou relativizar as dores por eles provocadas naqueles mesmos outros não-ungidos que acreditam existir exclusivamente para servirem de contraponto negativo às benesses, qualidades e valores que acreditam ornar suas abençoadas figuras.

Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

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