Quem já tem mais de 40 anos e os que ainda se dão ao desfrute de instruírem suas reflexões de modo mais trabalhoso do que ler e repassar memes enviados pelas chamadas “tias do zap, zap” já se deram conta de que poucos momentos e ambientes ainda existem para conversas menos rasas e mais produtivas do que aquelas onde imperam o “nós x eles” ou o “na minha opinião é isso mesmo”. Mais ainda, devem lembrar de amigos, parentes e conhecidos que não encerravam suas conversas ou interlocuções com um “fulano é ladrão mesmo”, um “isso é coisa de comunista” ou um “fascista age dessa maneira”, levando à conclusão de que, dobrada a próxima esquina, lá estarão os quatro cavaleiros do apocalipse.
É assim (melhor, passou a ser assim) e nós não nos demos conta. Pior: muitos de nós estamos vivendo como se às seis horas da manhã, ao primeiro toque do interfone, estarão a nos esperar a Polícia Federal, um cobrador de uma milícia, uma senhora vestida de preto com uma foice em suas mãos ou um anjo qualquer com o bilhete premiado para o arrebatamento. Comportamento, ah! o tal comportamento! Filhote do hábito, primo da preguiça e sobrinho da ansiedade, ele chega a nosso chamado, e instala-se como um cunhado folgado, um genro abusado, no sofá de nossa sala, abrindo as nossas geladeiras sem cerimônia e passando a ditar a rotina de nossas vidas.
Ele não vem à toa, desavisado e sem ser convidado, mas atende nosso chamado com muito mais velocidade e eficácia que aquelas listas de fim de ano, que listam regimes milagrosos, reatamentos de amizades ou arrumações de armário. Um desses (comportamentos) é o de enxergar crime em qualquer ação do outro que nos desagrade, que não corresponda às nossas expectativas ou divirja de nossa visão de mundo. Fulano pensa assim: pudera, ele é um bandido! Beltrano fez isso: queria o quê desse marginal? Cicrano falou determinada frase: prenda-se lhe o, já que isso é um atentado contra isso ou aquilo! E essa ciranda também apresenta suas contramarchas, igualmente nefastas, como se vê a cada momento em que alguém, absolutamente comprometido com tal ou qual versão, escolhe sublimar ou desdizer criminosas determinadas atitudes que até seu próprio autor, ou autora, confessam.
Pois esse agir mecânico, fruto de omissa concordância, trabalha como uma espécie de cupim de nossa autoestima, e vai roendo as bases de uma virtude essencial ao desenvolvimento da sociedade, que é o equilíbrio. Dando como exemplo um país muito lembrado sempre que se está a falar sobre liberdade, sistema de justiça ou desenvolvimento, os EUA, lá prevalece a confiança mútua como vetor indutivo das relações pessoais e comerciais. Os negócios e a convivência dos americanos começam no nível do respeito mútuo, todo mundo sabendo seus limites e cada um fazendo sua parte, aquele que fugir do riscado arriscando-se a sofrer pesadas consequências pelo seu agir ilícito ou, mais ainda, criminoso.
Não se deslembram aqui fatos absurdos e absolutamente delinquentes perpetrados naquele país, muitos iguais e até piores que os nossos, mas a premissa é “primeiro apura-se a iniquidade e seu autor, e, depois, puna-se lhe”, inclusive com a tal execração social que é efeito da materialidade, da autoria e da tipicidade comprovadas.
Atentar contra a imagem, a honra e a dignidade de algum americano ou empresa daquele país antes de que restem comprovadas as mais mínimas circunstâncias que justifiquem tais rótulos e detrações pode custar ao açodado falastrão não apenas uma cruel mordida em seu patrimônio, mas também bons anos de reflexão em algum estabelecimento correcional. Não que eles sejam mais pudicos, mais conscientes ou mais evoluídos do que nós, até porque, em vários aspectos da convivência e dos valores humanos, acredito que estamos bem adiante daquele povo. Mas porque quem parte da desconfiança, quem vê crime ou má-fé em tudo o que lhe cerca, perde um naco considerável de seu tempo e de sua energia em suposições e cogitações – pior, em crenças – que não alteram absolutamente nada a situação, não corrigem absolutamente nada e tampouco ajudam a proteger o já mencionado equilíbrio social.
E isso, num país que tem a fidúcia (confiança) como matriz de seu desenvolvimento, significa como que aquela algema que presos perigosos usam nos tornozelos, dificultando-lhes qualquer movimento mais largo ou rápido. Por isso nossos paradigmáticos vizinhos do Norte escolheram confiar em princípio, e punir severamente quem trai.
Problemas existem, e graves, em qualquer grupamento humano, uns sofrendo com conflitos religiosos, outros com mazelas econômicas, outros mais com desafios naturais dos ambientes em que vivem. Porém enxergar dolo em qualquer atitude ou, do contrário, fechar os olhos à sua evidente presença é, num primeiro caso, dormir de olhos abertos ao lado de alguém que imaginamos ser nosso inimigo e, no segundo, entupir-se de soníferos para fazê-lo. Em ambos os casos, noites horrorosas e dias seguintes igualmente sofridos, por qualquer ângulo que se enxergue.
De mais a mais, quando julgamos que todo e qualquer ato, pensamento ou vontade de alguém que divirja de nossos parâmetros e valores é, indubitavelmente, criminoso, fomentamos ainda mais essa cultura e esse comportamento em nosso meio, e nos sujeitamos a viver em uma sociedade esquizofrênica, na qual as pessoas chegam ao ápice desconfiando delas mesmas, como um conhecido meu, já falecido, que toda vez que tinha que digitar uma senha e repeti-la para conformação, nesses aplicativos da vida, pedia a um estranho que o fizesse, para sequer ele conhece-la, impedindo que, por descuido ou demência, sabe lá, ele mesmo se enganasse a si próprio, e realizasse alguma coisa que o “eu” atual estivesse a impor ao “eu” anterior. Isso é vida?