Quando a série documental ficcional Tremembé: A Prisão dos Famosos surgiu no meu radar, confesso que a primeira reação foi de desinteresse. Com um tema tão explorado pela mídia e pelo audiovisual brasileiro, pensei: lá vem mais uma tentativa de capitalizar sobre a tragédia, prometendo um ângulo novo que, no fim, resultaria em mais do mesmo. Um certo ceticismo, o mesmo que nos acompanha ao ver a saturação de conteúdos sobre figuras polêmicas como Ted Bundy, me impedia de dar uma chance ao novo produto do catálogo.
No entanto, o sinal de alerta veio do próprio público: em menos de uma semana, Tremembé já ostentava o topo do ranking da Prime Video. Decidi ignorar sinopses e críticas e mergulhar direto no conteúdo. A surpresa foi imensa e veio, especificamente, da performance central: a atuação refrescante de Marina Ruy Barbosa como Suzane Von Richthofen.
Para quem nunca acompanhou seus trabalhos em telenovelas, como é o meu caso, não há qualquer filtro de memória afetiva ou preconceito. Essa distância permitiu que eu me rendesse à complexidade que Marina imprimiu à personagem. A grandeza de sua Suzane reside em uma escolha ousada: a atriz evita as leituras estáticas e simplistas que as leituras de matriz sociológica ou psiquiatra tentaram imprimir à figura real – seja a da pobre menina rica filha de pais ausentes ou a da psicopata fria. Marina fica aquém dos estereótipos e, paradoxalmente, vai muito além.
A Suzane de Ruy Barbosa ganha matizes, densidade e complexidade. Ela é, a um só tempo, vulnerável e perversa. Demonstra medo e ansiedade, mas também uma frieza calculista e estratégica. Não há, em momento algum, a tentativa de imprimir o verniz de vítima ou de monstro sem alma. A personagem é uma teia de ambiguidades que atiça a curiosidade a cada cena.
O mais notável é a sutileza da construção. Marina não apela à espetacularização. Sua performance é feita de camadas: um gesto, um olhar, uma expressão – tudo significa, nada é de graça. O cinismo, por exemplo, não é um cartão de visitas, mas uma marca que se constrói lentamente ao longo da temporada, sem jamais sequestrar por completo a humanidade da personagem – ele faz parte da personalidade, mas não representa a totalidade do que seria Suzane.
A Suzane que emerge de Tremembé é uma figura inédita. Talvez por não se preocupar em responder quem é a verdadeira Suzane Von Richthofen, a atuação de Marina Ruy Barbosa refunda a narrativa que há mais de duas décadas alimenta o imaginário brasileiro. Ela nos ensina que a tarefa da arte não é capturar a vida em sua literalidade – afinal, nenhuma vida cabe inteiramente na arte e, se coubesse, talvez nem nos interessasse. Sua arte é a transfiguração: não é a realidade, mas poderia ser, renovando nosso olhar e tornando a vida mais instigante e vibrante do que jamais vimos, porque por um momento fomos retirados do automatismo.
Como toda boa obra de arte, a performance de Marina Ruy Barbosa desafia o pensamento crítico a se movimentar. Assim como a complexidade da vida, ela nos convida a falar, mas sem a pretensão de nunca se esgotar. O tempo dirá o impacto dessa atuação em sua carreira, mas o sucesso de Tremembé já é, em grande parte, o sucesso dessa sua corajosa e marcante transfiguração artística.
*Francisco Neto Pereira Pinto é Psicanalista, Escritor e Professor Universitário. Autor de À beira do Araguaia. @francisconetopereirapinto



                                    







