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Urupema

Urupema é o nome de um extraordinário romance de Andréia Delmaschio, publicado recentemente, vencedor do prêmio Carolina Maria de Jesus, do Ministério da Cultura, para literatura produzida por mulheres de 2023. É mais um trabalho que atesta o argumento que venho sustentando em vários artigos publicados neste espaço, de que no Espírito Santo se produz uma literatura de alta qualidade. Basta ler Urupema para termos certeza disso.

Entretanto, não me sinto confortável para realizar uma análise do conteúdo literário da obra, por isso me atenho às dimensões sociológicas do trabalho. Tenho tentado – os que seguem meus artigos são testemunhas disso – levantar, através da boa literatura que se faz no Espírito Santo, os fragmentos da construção do nosso imaginário social, no qual as dimensões do político são sempre muito importantes.

Boa parte da ação de Urupema se passa na fazenda que pertence aos avós da menina que narra a história. A personagem, logo no início da trama, é apresentada assim: “Férias na fazenda já eram aventura de sobra para a criança cerceada que eu era, o ano inteiro gasto entre a pequena casa de tábuas, ao pé do mangue, e a escola periférica, no alto do morro mais pobre no bairro pobre.” Não se trata, portanto, de uma história que se passa no interior das classes capixabas mais ricas. É, antes, pelo contrário, um mergulho no mundo daqueles que abandonaram a vida no campo para viver o dia a dia das periferias da nossa região metropolitana.

Em outros romances já apresentados aqui podemos ver o mundo rural capixaba, que tão bem conheço da minha infância nos anos 1950 e 1960, como em O Menino; ou então a dura vida da periferia da Grande Vitória, como nos contos reunidos em A última Noite ou no romance Aninhanha, todos do grande escritor Pedro J. Nunes. Em Urupema, o recurso narrativo utilizado por Andréia Delmaschio é muito original. Nele a periferia, suas feiuras a agruras estão muito próximas do mundo rural, visitado pela narradora em sua infância, mais exatamente no Patrimônio do Ouro e na Vila do Quinze, na região Norte do Espírito Santo.

Assim, lá pelo auge da ditadura militar, vemos a coexistência desses dois mundos, embora o começo da história se passe justamente nos anos 1950 e 1960. Essa fusão e transição de dois mundos nos dão pistas importantes para entender como uma espécie de longa duração, na tradição historiográfica francesa, se deu entre o universo da roça e da cidade, na modernização industrial conservadora que tivemos na época. A total ausência de políticas públicas por parte das autoridades capixabas para acolher esses deserdados do campo explica muito das mazelas trazidas pela violência, pelo autoritarismo e pela continuidade das desigualdades vindas do campo.

O livro não fantasia e nem romantiza o mundo rural, lá onde está fincada a colonização europeia do século XIX dos italianos, personagens da história, como os avós paternos da menina. Ali também se fundem a maldade, o preconceito e a discriminação, muitas vezes típicos desses personagens históricos. É muito bem construída a forma como a perversidade machista desse avô paterno se mostra a todo momento. Mau marido, mau pai, mau vizinho, nazifascista. O personagem não deixa que pensemos que tudo o que vem da roça é ingênuo e puro, como muitas vezes se constrói na fantasia urbana.

A grande diferença entre os dois mundos vividos pela menina no romance é a coesão social: “É provável que a minha pequena família, já nessa época migrada para a cidade há uma década, fosse bem mais despossuída que aquelas outras, dos meus parentes, mesmo os mais pobres, porque eles viviam todos integrados a uma comunidade coesa, na qual grande parte dos serviços e bens era compartilhada e realizada conjuntamente. Antes de tudo, eles tinham uns aos outros.”

Quanto à vida na cidade maior, é tudo muito mais duro: “Os festejos religiosos, único tópico em que nossos pais aparentavam plena concordância, formaram um capítulo especial no grosso livro dos constrangimentos públicos que nos eram impostos pela mais singela ignorância e farta insensibilidade do casal. A nossa assídua participação neles expunha com imodéstia uma espécie de triunfo dos desejos estéticos e de socialização daqueles dois caipiras suburbanizados.”

Na família, que vive na periferia da Grande Vitória, onde parece que a paz e a felicidade estavam sempre ausentes, tem destaque a história de um menino particularmente perverso, ligado a toda uma simbologia de violências. Nada vou adiantar de sua participação na trama de Andréia Delmaschio, para não tirar do leitor o desejo de ler essa obra, que engrandece a nossa literatura e é mostra do vigor intelectual das mulheres que escrevem em nosso estado.

João Gualberto Vasconcellos
João Gualberto Vasconcellos
João Gualberto Vasconcellos é mestre e professor emérito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Doutor em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciência Política de Paris, na França, Pós-doutorado em Gestão e Cultura. Foi secretário de Cultura no Espírito Santo entre 2015 e 2018.

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