A tendência contemporânea de museus a céu aberto consolidou uma transformação paradigmática no campo das instituições culturais e reconfigurou as relações entre obra, espectador e ambiente. Esses espaços transcendem a função expositiva tradicional, ao dissolverem as barreiras arquitetônicas e integrarem a paisagem natural como elemento constituinte da experiência estética. Esse é o caso de instituições já famosas e de acervo respeitado mundialmente, como o Instituto Inhotim, em Minas Gerais, ou o Gibbs Farm, na Nova Zelândia, que não se limitam a dispor esculturas ao ar livre, mas propõem uma imersão sensorial, em que as obras dialogam permanentemente com a topografia, a vegetação e as variações climáticas. A percepção da arte, nesses casos, deixa de ser estática e torna-se um processo fluído e mutável, influenciado pela passagem do tempo e pelos fenômenos naturais.
O Parque Cultural Casa do Governador segue esse tendência global largamente reconhecida, tanto na sua concepção quanto na curadoria dos trabalhos que formam seu acervo permanente. Essa reconfiguração espacial reflete uma mudança de ethos institucional e alinha-se com a noção de que os museus devem operar como agentes catalisadores nas suas comunidades, um princípio destacado pelo International Council of Museums (ICOM). Ao situar o acervo em contextos menos formais, os museus a céu aberto promovem um acesso mais democrático e uma experiência menos normativa da arte. Em simultâneo, essa tendência responde a inquietações ecológicas atuais, enfatiza uma conexão visceral com o meio ambiente e, em muitos casos, incorpora práticas de sustentabilidade. Dessa forma, tais espaços expandem o conceito de museu e reposicionam a prática artística como uma interface crítica para repensar o lugar do humano no mundo e dos artistas com relação às suas comunidades.
Pode parecer óbvio, mas é necessário afirmar, que o Espírito Santo é um estado rico em diversidade cultural. Muitas de nossas formas de expressão constituem um complexo mosaico de matrizes africanas e indígenas, cujas interações e sincretismos delinearam manifestações singulares no contexto brasileiro. O Congo capixaba exemplifica esse entrelaçamento com o guarará ressignificado por africanos escravizados que buscavam refúgio em aldeias. Esse fenômeno manifesta-se, também, na dimensão religiosa, em que santos católicos, como São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, foram integrados a práticas e cosmologias ancestrais, o que permitiu a preservação estratégica de tradições africanas e originárias sob a imposição do catolicismo colonial.
No âmbito das artes manuais, verifica-se a notória influência indígena na tradição ceramista, com a panela de barro, modo de fazer tombado como patrimônio cultural, e a confecção de utensílios através do trançado com fibras vegetais. A cultura material de raiz africana está evidente, por sua vez, na confecção da casaca, instrumento talhado em madeira, fundamental para o ritmo das bandas de congo e que reflete a influência negra na música local.
Demograficamente, os povos indígenas, como os Tupiniquim, Guarani e Guarani Mbya, mantêm presença significativa, notadamente no município de Aracruz, onde a transmissão de saberes e a manutenção de suas tradições seguem ativas, com as mulheres no papel fundamental dessa manutenção da vida e dos mundos ancestrais. A cultura capixaba é um campo dinâmico de resistência e reelaboração de identidades, onde heranças de variadas origens coexistem e se fundem para forjar expressões culturais nossas.
Dado esse cenário, é justo e adequado que os museus capixabas salientem a presença e as heranças africanas e indígenas que nos formam. São corretas, acertadas e esperadas as escolhas curatoriais do Parque Cultural Casa do Governador, ao inserir em seus acervos permanente e temporário alguns trabalhos que refletem a realidade em que vivemos que, quanto mais diversa, mais saudável.

A escultura “Movimento à Tecnologia”, de Natan Dias, estabelece um diálogo tenso entre o suporte material, presumivelmente de caráter industrial ou tecnológico, e a referência a origens ancestrais. Isso evidencia uma contradição equivocada entre tecnologia e progresso. O ato de cortar com o facão surge como um marcador temporal, que coloca em confronto memórias soterradas e processos de apagamento. O objeto sugere uma espécie de redoma memorial e questiona a própria instituição cultural que a abriga e as narrativas que tradicionalmente preserva. Logo, o parque deixa de ser cenário e transforma-se em parte constituinte da crítica proposta, em que a paisagem age como testemunha e arquivo. Como cheguei a comentar em outro texto, as esculturas de Natan Dias ecoam modulares de Amir Nour, mas também guardam outros traços compositivos que lembram Emanoel Araújo e Jorge dos Anjos.
Noutra parte do parque, a instalação “Círculo Máximo”, de Geovanni Lima, constitui uma proposta artística de engajamento crítico, na qual a articulação entre espaço, materialidade e simbolismo desloca a experiência do espectador para uma reflexão sobre territorialidades e espiritualidades afrobrasileiras. Em primeiro plano, temos uma ressignificação do conceito de círculo máximo, termo da geografia que designa o maior círculo que pode ser traçado sobre uma esfera e é fundamental para a navegação astronômica, ao determinar a rota mais curta entre dois pontos na superfície terrestre. Ao apropriar-se desse conceito, a instalação subverte sua aplicação cartográfica tradicional e o transforma em um instrumento de navegação cultural. Ela desafia a “lógica norte-sul”, tanto como convenção cartográfica quanto como metáfora de uma ordem mundial eurocêntrica. Além disso, “Círculo máximo” propõe um sistema de orientação baseado nas forças da natureza e na cosmologia dos orixás. As 16 esculturas, movidas pelo vento, materializam essa proposta e tornam visível e sensível uma geografia espiritual.
A escolha do aço galvanizado como suporte material estabelece um diálogo tenso e produtivo entre a industrialidade e o sagrado (algo que não deve ser desconsiderado nas demais esculturas). Trata-se de um material durável e associado à engenharia moderna, que aqui dá corpo a representações de entidades ancestrais. Esse contraste acentua a contemporaneidade do apelo espiritual da obra, de modo a afirmar a permanência e a vitalidade das tradições de matriz africana no espaço público brasileiro. O movimento cinético, imposto pelo vento, faz com que o trabalho desvie da condição de simples monumento e se estabeleça como organismo vivo, dependente e em constante diálogo com o ambiente natural do parque. A força do vento torna-se o sopro (o axé) que anima as esculturas. O conjunto performatiza a presença dos orixás e reforça a reflexão sobre a maré e as forças naturais.
Ao simbolizar cada um dos 16 orixás, Geovanni Lima inscreve-se em uma longa linhagem artística que reconhece e atualiza publicamente a cosmologia afrobrasileira, com nomes como Antonio Oloxedê e Mestre Didi, considerado um dos primeiros artistas a reinterpretar objetos rituais do Candomblé como obras de arte autônomas. Através de uma estratégia formal e conceitual sofisticada, “Círculo máximo” articula a reflexão sobre a interseção entre territorialidades, memórias e espaços espirituais, com a proposição de referências cartográficas alternativas, nas quais a cultura, a espiritualidade e a força da natureza se fundem para reivindicar o espaço simbólico e físico para as ancestralidades afrobrasileiras.
Como em uma reversão da experiência expositiva do Parque, chegamos à escultura “Agô”, de Carla Désirée. Assim como nos dois casos comentados, esse trabalho opera uma intervenção crítica que transcende a presença objetual e afirma-se como um gesto espacial e político. Assim deveria ser com quaisquer proposições artísticas e manifestações culturais, embora sejam comuns as tentativas de desvincular atitudes poéticas de atitudes políticas. Essa é uma atitude corriqueira para gestores de instituições culturais, para teóricos puristas e inseguros e para uma ampla parcela do público. Para artistas, dada a normalização da educada e subentendida pressão de curadores, galeristas, diretores e jurados de editais de financiamento, a suavização pode ocorrer de modo quase não-consciente.
Em alguns casos, como o de “Movimento à tecnologia”, referências culturais marcadas na memória pública e na percepção geral sobre arte – pensemos na materialidade e na visualidade de obras concretistas – funcionam como uma camada de amenidade em um primeiro contato do público. Noutros casos, como o de “Círculo máximo”, a intersecção entre campos complexos (cartografia, estudos da paisagem, performatividade dos objetos), aliada à construção lúdica (cores, cataventos, movimento, composição paisagística), atua como um eficiente elemento retórico. Ou seja, não é difícil imaginar que alguém passe pelo trabalho de Natan Dias e, antes de assumir suas possibilidades reflexivas, integre-o à imaginária dos gramados de espaços públicos urbanos brasileiros, repletos de grandes peças de metal oxidado. Em uma linha similar, imaginamos o público entre os postes coloridos do trabalho de Geovanni Lima, ávidos por uma bela foto, sem suporem que já participam de uma estratégia discursiva. Nada disso ocorre com “Agô”.

O título, que em iorubá significa “pedido de licença”, estabelece desde o início uma relação protocolar com o espaço, que é simultaneamente de respeito e de reivindicação. A escultura não pede permissão de forma subalterna, mas exige a abertura de um lugar para o sagrado de matriz africana no domínio público, um território historicamente marcado pela negação dessas epistemologias. A materialidade, constituída por tubos de aço galvanizado soldado com pontas feitas por fundição, articula um diálogo explícito entre a tradição e a industrialização. Mas, algo mais fica evidente. O aço sequer precisa ser ressignificado. Ogum é o orixá senhor do ferro e da metalurgia, ciência dominada pelos povos africanos, da extração de minérios até a transformação em ligas e produtos acabados, desde tempos muito anteriores às invasões europeias. A influência de Ogum se manifesta em martelos, facas, enxadas e espadas. O aço, em “Agô”, cria uma ponte conceitual entre o saber ancestral e a técnica contemporânea.
A estrutura formal, que incorpora lanças e tridentes associados a Exu e Pombagira, configura um campo de forças simbólicas tão evidente, que não poderia ser ignorado nem mesmo pelo visitante mais distraído. O tridente liga a terra aos outros três elementos primordiais, água, fogo e ar. A sua presença fala da guarda dos caminhos, da abertura e do fechamento, da comunicação entre o espiritual e o material. Essas características, para além da referência, funcionam como vetores que demarcam e protegem aquele espaço consagrado e desafiam a paisagem neutralizada do parque.
Outro gesto agudo da obra reside na incorporação de um espelho no centro da peça, que reflete a imagem do visitante, ao evocar o abebé de Oxum. Esse dispositivo permite uma dupla interpelação: primeiro, coloca o espectador no centro do sistema cosmológico e o torna parte constituinte da obra, além de impossibilitar uma postura puramente contemplativa e de distanciamento; segundo, convida a um exercício de autorreflexão que é um confronto com seu corpo presente e sua identidade em relação com a escultura. “Agô” materializa conceitos investigados pela artista, cuja produção demonstra um interesse continuado por práticas espirituais e ancestrais.
Pensemos naquela que, talvez, seja a característica mais evidente dessa escultura, depois da figura dos tridentes e diretamente a ela associada. A cor vermelho, nas representações de Exu, longe de ser uma mera escolha estética, constitui um elemento cromático carregado de significados cosmológicos, cuja compreensão é fundamental para analisar tanto a sua função nas religiões afrobrasileiras quanto o processo histórico de sua distorção e associação ao mal.
No panteão das religiões de matriz africana, Exu é compreendido como o mensageiro divino, o guardião das encruzilhadas e o princípio dinâmico que possibilita a comunicação entre os humanos e os orixás. A iconografia que o representa é povoada por símbolos que apontam para essa natureza liminar e mediadora: o tridente ou lança, o ogó e, de forma mais visceral, as cores vermelho e preto. Essas cores sintetizam a dualidade e a potência vital que Exu personifica. O vermelho, em particular, é associado à força, vitalidade e ao dinamismo que impele o movimento do cosmos. É a cor do sangue, da vida e da energia transformadora que, como o fogo, pode tanto construir quanto destruir para renovar. Essa cor, portanto, não é diacrítica de uma entidade maligna, mas sim de um princípio fundamental de ordem, comunicação e equilíbrio no universo.
Contudo, essa simbologia foi sistematicamente deturpada por um processo de demonização intimamente ligado ao racismo religioso. A associação pejorativa de Exu e de suas cores a entidades demoníacas tem suas raízes no período colonial, mas foi intensificada e disseminada na contemporaneidade pela ação de segmentos cristãos ligados à diversas instituições de poder político e econômico. Em seu proselitismo, essas instituições apropriaram-se do imaginário colonial que já inferiorizava as culturas africanas e o transformaram em uma narrativa teológica agressiva, na qual os orixás são equiparados a demônios e suas cores e símbolos são apresentados como representação do mal. Tal estratégia de demonização não é um mero desacordo doutrinário, mas uma ferramenta de violência epistemológica que visa deslegitimar e apagar as cosmovisões africanas e afrobrasileiras.

As consequências dessa perseguição são materiais e violentas. Esses ataques se manifestam desde ofensas verbais e pichações até agressões físicas, invasões e incêndios criminosos de terreiros. A cor vermelho de Exu, outrora um símbolo de força vital, passa a ser, neste contexto de ódio, um marcador de vulnerabilidade, um alvo para a intolerância que busca extinguir da esfera pública as expressões religiosas afrobrasileiras.
Em suma, o vermelho nas representações de Exu funciona como um ponto de condensação semântica, no qual se encontram a cosmologia das religiões afrobrasileiras e a história do racismo religioso no Brasil. Analisar essa cor é percorrer o caminho que vai da complexa filosofia iorubá até a violência do preconceito, com o entendimento de que a reafirmação contemporânea desses símbolos em espaços públicos e na arte, como visto em “Agô”, constitui um ato de retomada de uma narrativa há muito tempo distorcida. Seus tridentes (de hastes retas para Exus e curvas para Pombagiras) perfazem a encruzilhada, pensada nas teorizações de José Carlos dos Anjos e Luís Rufino como o ponto de encontro em que as diferenças não se dissolvem em unidade, mas compõem pluralidade.
“Agô” é, certamente, uma das raras esculturas em espaços públicos do Espírito Santo que referencia e reverencia, de modo afirmativo, contundente e explícito, esses elementos das religiosidades afrobrasileiras. Nas palavras da própria Carla Désirée, em Agô. A encruzilhada como prática educativa a partir da escultura, da memória e do diálogo: “Os Exus e Pombagiras foram dois seres demonizados pelas práticas coloniais a partir do cruzamento transatlântico. Falar sobre eles é um ato político e de reeducação a partir das transgressões das normativas colocadas pelos colonizadores, sobretudo o que não conheciam.”
Mesmo diante desse cenário histórico pouco receptivo, a escultura de Désirée carrega uma longa tradição de reafirmações das simbologias religiosas afrobrasileiras nas artes. As relações de cores, materiais e orixás estão presentes nas pinturas de Abdias do Nascimento e Rubem Valentim, nos objetos de Nádia Taquary e dos já citados Jorge dos Anjos e Antonio Oloxedê, em Gustavo Nazareno, Beta Azevedo, J. Cunha, Ayrson Heráclito, Castiel Vitorino Brasileiro, Moisés Patrício e mais um sem-número de artistas, nacionais e estrangeiros, que poderiam ocupar volumes enciclopédicos.
“Agô” nos cumprimenta desde o Bosque das Esculturas para nos lembrar de que devemos propagandear, com o orgulho, a presença das religiosidades afrobrasileiras em território capixaba. O silêncio é uma estratégia de apaziguamento que apenas concilia para proteger o topo da pirâmide. Mais do que o orgulho individual, nossas instituições devem, por compromisso e responsabilidade, propagandear as existências negras do Espírito Santo, com todas as suas potências expressivas, religiosas, históricas, culturais, construtivas e, sim, políticas. É preciso fazer mais propaganda de Exu.
Revisão: Alana de Oliveira











