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Litigância abusiva e devedor contumaz

“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento,
mas ninguém diz violentas as margens
que o comprimem” – Bertolt Brecht

O sistema processual civil brasileiro, alicerçado nos princípios da boa-fé e da cooperação, tem como objetivo central a pacificação social por meio da tutela jurisdicional adequada. Contudo, quando instrumentos processuais são desvirtuados de sua finalidade, transformam-se em mecanismos de opressão e violência institucional. É neste contexto que se inserem as figuras da litigância abusiva e do devedor contumaz, duas faces de um mesmo problema: o uso distorcido do sistema jurídico para fins alheios à justiça. Este artigo analisa esses institutos à luz do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), da doutrina especializada e da filosofia de Bertolt Brecht, propondo uma reflexão sobre como as “margens do processo” podem comprimir injustamente os direitos das partes.

A litigância abusiva encontra seu regramento no art. 80 do CPC, que impõe aos litigantes o dever de agir com boa-fé e probidade. Segundo a definição doutrinária, configura litigância de má-fé quando a parte pratica conduta desleal, seja pela intenção manifesta de prejudicar a outra parte, seja pelo exercício temerário de direitos processuais. O dispositivo legal enumera situações exemplificativas, como alterar a verdade dos fatos ou fundar pedido em razão inverídica. Já o devedor contumaz, conceito desenvolvido pela jurisprudência, caracteriza-se pela reiterada e injustificada resistência ao cumprimento de obrigações, configurando um comportamento obstrucionista que nega a própria finalidade do processo.

Dessa forma, a relação entre esses institutos revela-se profundamente simbiótica. O devedor contumaz frequentemente utiliza de recursos protelatórios e incidentes processuais infundados com objetivo protelatório, caracterizando litigância abusiva como estratégia para postergar o adimplemento da obrigação. Por outro lado, a litigância abusiva pode ser o instrumento que sustenta a contumácia do devedor, criando um ciclo vicioso de violência processual. O aforismo de Brecht aplica-se com precisão a esta dinâmica: enquanto o devedor contumaz é percebido como o “rio violento” que arrasta consigo a segurança jurídica, pouca atenção se dá às “margens” que o comprimem, o sistema processual que, por vezes, permite e até incentiva comportamentos abusivos pela morosidade na aplicação de sanções eficazes.

Nessa perspectiva, o ordenamento jurídico oferece mecanismos para combater ambos os fenômenos. O art. 81 do CPC estabelece as sanções para a litigância de má-fé, incluindo multa, condenação ao pagamento de honorários advocatícios e perda do objeto do processo. Já em relação ao devedor contumaz, o ordenamento jurídico oferece mecanismos para combatê-lo, como o Art. 774 do CPC, que trata dos atos atentatórios à dignidade da justiça. Embora a tipificação do ‘devedor contumaz’ como figura processual autônoma seja objeto de Projetos de Lei, a doutrina alerta que a mera previsão legal não basta, sendo necessária uma mudança cultural na aplicação do direito, com os juízes assumindo postura mais ativa no controle dos abusos processuais.

Assim, a análise conjunta da litigância abusiva e do devedor contumaz revela a complexidade das relações processuais contemporâneas. Ambos os institutos representam distorções do sistema jurídico que precisam ser combatidas com vigor, mas também com compreensão de suas causas estruturais. A metáfora de Brecht nos convida a refletir que, antes de condenar a “violência” aparente do devedor ou do litigante abusivo, é preciso examinar criticamente as “margens” que os comprimem, um sistema processual que, por vezes, premia a protelação e penaliza a cooperação. O desafio que se coloca ao operador do direito contemporâneo é, portanto, o de atuar não apenas na repressão aos comportamentos abusivos, mas na construção de um processo civil verdadeiramente cooperativo, onde as margens não comprimam, mas orientem o curso do rio processual em direção à justiça. Afinal, como nos ensina a sabedoria brechtiana, a verdadeira justiça processual exige que examinemos tanto o rio quanto as margens que o conformam.

João Batista Dallapiccola Sampaio
João Batista Dallapiccola Sampaio
Advogado de balcão há 39 anos, especialista em direitos sociais, graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), pai orgulhoso e avô realizado

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