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A narrativa visual de signos únicos em “sem-fim”, de Carol Cuquetto

A escolha de “sem-fim” como título para essa extensa série e para a exposição aberta na Casa Flor aponta tanto para a inesgotável variedade de formas e criaturas surgidas do traço de Carol Cuquetto quanto para a própria experiencia de desenhar e para o desenho como processo. As dezenas, talvez centenas, de seres bidimensionais que passaram a habitar o espaço são perceptíveis e diferenciáveis por sua alta e sintética pregnância, de fácil fechamento até mesmo pelo olhar distraído. Essa acentuada legibilidade faz com que as representações de fauna e flora imaginários beirem à condição tipográfica, enquanto fogem desse emprego pela fragmentação e pela disposição espacial.

Carol Cuquetto explicita o fluxo incessante de riscos condensados, que a faz saltar de uma criatura para a outra, sem que se possa alcançar a completude. Em alguma medida, “sem-fim” reflete o entendimento de continuum, como desenvolvido por Diego Rayck da Costa, em sua tese “Desenho: pretensão, erro e ruína” (2015), ao comentar que ele “é capaz de operar a união na diferença, tensionar unidade e relação.”

Além disso, o continuum não pode ignorar a intenção de desenhar, o impulso que move a artista e a faz saber que desenhará: “Tanto no caso desta disposição ser tratada como um impulso ainda inarticulado, quanto como uma ideia que pede o grafismo para seguir sua formação, é possível assumir que nesta intenção já há desenho”.

Ao tomarmos consciência do tempo em que surgem o desejo de pôr em forma, o esforço prático da concretude do desenho e a aparente impossibilidade de encerrar a série, ou seja, sua continuidade indeterminada, embora sempre circunscrita em um conjunto, podemos encarar sua apresentação como uma narrativa visual através de signos únicos. Maria Van Os, Adrie Haese e Deirdre Pretorius, em “Um modelo para criar e analisar livros ilustrados sem palavras” (2024), consideram que “Artistas que trabalham com narrativas sem palavras frequentemente utilizam todos os aspectos do peritexto”.

No caso de Carol Cuquetto, poderíamos espelhar a mesma lógica para a compreensão de uma mostra no espaço.

Quando falamos em narrativas visuais, não deve haver a pressuposição de uma narratologia que pensa o conjunto pela linearidade da contação de história, seja ela intercalada ou não por retornos temporais, com um ponto de início e uma conclusão. Ao nos libertarmos da obrigação de estruturarmos mensagens com imagens do mesmo modo que o faríamos com palavras e frases, podemos perceber que há uma narrativa de conjunto, um aglomerado de fragmentos, ou uma constelação de signos.

Maria Van Os pensou um grupo de características para as suas narrativas visuais sem palavras que pode ser útil para nos aproximar de variados conjuntos de imagens: “temporalidade, focalização, personagens, eventos, cenário, estilo gráfico e peritexto.” Na mostra de Carol Cuquetto, esses elementos estão presentes, mas com uma variação substancial entre evento/situação e cenário/suporte. Cláudia França, em “Borracha, transparência e peso no espaço real: por um novo modo de habitar os desenhos de Lúcia Fonseca” (2012), comenta que parece ser corriqueiro para artistas pensarem que o desenho principia no momento em que o traço surge sobre a superfície, mas “Há um corpo anterior que recebe o traço, o corpo do suporte.

Corpo que em muitos momentos foi percebido em sua transparência, como aquilo que permite a visualidade de outra coisa. Corpo anterior como vidro transparente pelo qual se olha, e não para o qual se olha.” Os desenhos de Carol Cuquetto seguem no sentido oposto ao das composições de Lúcia Fonseca, mas pensar a transparência é, também no seu caso, uma necessidade para lidar com esse corpo prévio.

Em “sem-fim”, o branco do papel e da parede que recebe a projeção não se diferem da transparência do vidro. Não se trata apenas de considerar que a luz atravessa um elemento concreto e nos permite misturar visualmente as linhas e as formas com os movimentos de dentro e de fora. Seus desenhos são feitos para serem empregados, para carimbar superfícies e espaços. Essas criaturas estão em suspenso sobre as paredes, papel e vidro. Elas foram feitas para se desprenderem e circularem por qualquer superfície.

É como se estivéssemos diante da lição de Geórgia Kyriakakis, em “Desenho como matriz” (2007): “Ao perceber que, no desenho, a superfície material de um papel pode ser simultaneamente presente e ausente, opaca e transparente e que, apesar de toda a materialidade de uma linha, há sempre um quantum de impalpabilidade da imagem que ela cria, o desenho se transforma para mim numa espécie de território, no qual a dialética entre a concretude das coisas e a imaterialidade da imagem é sempre problematizada”.

Carol Cuquetto traça desenhos capazes de marcar as superfícies e, embora possamos usar as palavras carimbo, matriz e cópia, não se trata integralmente da experiencia de gravar. Sua linearidade, simultaneamente densa e solta, organiza figuras abertas para uma variedade de suportes de modo a espacializá-las, como se pudessem flutuar em sua bidimensionalidade.

Em “A história crítica perdida da ilustração” (2010), ao reclamar a respeito de um livro sobre ilustradores contemporâneos, Rick Poynor apontou para o que considerava um problema de compreensão entre distintas áreas que trabalham com produção de desenhos: “Sem ver uma imagem editorial na página onde foi usada, em relação a manchetes, textos e outras imagens, não temos como determinar se ela foi empregada de forma significativa ou não. Mostrar as imagens dessa maneira desencarnada as transforma em arte para ser apreciada inteiramente em seus próprios termos. Pode haver um bom argumento para essa escolha, mas isso só pode ser feito escrevendo sobre as imagens como uma forma de arte”.

Nesse mesmo texto, ao comentar que “Designers-ilustradores geralmente têm um forte sentimento por tipos decorativos. Eles também mostram uma inclinação acentuada para composição abstrata ou semiabstrata e uma predileção por um plano de imagem onde objetos flutuam e colidem em arranjos não naturalistas”, Poynor deixa de explicitar um aspecto relevante da prática desses profissionais: o trabalho com formas vetorizáveis treina o olhar e o traço para atingir tipos específicos de sínteses visuais.

Mesmo sem a presença da cor, não é difícil olhar para as criaturas de “sem-fim” e imaginar algo entre Apollinaria Manko e Hildegarde Handsaeme.

O olhar treinado pelo desenho em meios digitais e analógicos, em telas, botões, papeis, lápis e canetas faz com que o desenho se comunique com as superfícies do mundo de maneiras mais maleáveis e a favor de uma independência dialógica da forma.

É comum pensarmos o desenho um como um projeto, uma potência de algo que se realizará em outro meio. Raramente, pensamos no movimento oposto. Nesse tipo de síntese realizada por Carol Cuquetto, é como se pudéssemos arrastar parte do universo de objetos e esculturas de um John Meade para a bidimensão e os soltássemos para deslizarem pelas superfícies. Enquanto desviamos o olhar, talvez as criaturas de “sem-fim” façam isso. Não duvidaria se me dissessem que elas ficam paradas enquanto as observamos e circulam livremente durante nossa ausência, quando as luzes se apagam e a transparência desaparece.

Revisão: Alana de Oliveira

Rodrigo Hipólito
Rodrigo Hipólito
Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Escritor, historiador da arte, crítico e podcaster. Professor do Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM-UFES, 2015-2020), do Departamento de Comunicação (DEPCOM-UFES, 2023-2025) e dos cursos de Pedagogia e Psicologia da Faculdade Europeia de Vitória (FAEV, 2015-2023). Editor da Revista do Colóquio e redator do site Nota Manuscrita.

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