Num panorama político em pleno deslocamento, emerge um sinal discreto, mas expressivo: Lula, cuja base histórica sempre se situou nos segmentos da classe trabalhadora, da periferia e dos católicos — como o seu próprio PT — está sistematicamente ensaiando gestos de aproximação ao segmento evangélico, um espaço que muitos consideravam quase monopólio de seu algoz Jair Bolsonaro. Em declarações recentes, ele não apenas reconhece uma lacuna de interlocução, como faz uma autocrítica: “Evangélico não é contra nós, nós é que não sabemos falar com eles. O erro está na gente, não está neles.” Trata-se de um lampejo de lucidez de um veterano que agora decide reajustar rota. Mais uma, desta vez no podcast “Papo de Crente”: “Nosso governo quer unir os brasileiros, não dividi-los por religião”.
Esses movimentos discursivos, por si só, já imprimem um caráter sofisticado à iniciativa: não se trata de mera retórica, mas de um reposicionamento sutil; uma declaração de intenção de ocupação simbólica de terreno que até então parecia vedado. A direita cristã-evangélica, alinhada à figura de Bolsonaro, vinha se sentindo confortável em sua liderança hegemônica, mas agora vê surgir do outro lado uma voz de esquerda que procura dialogar com ela em termos de respeito, reconhecimento e simbologia.
No centro dessa ofensiva estão peças relevantes. A primeira-dama, Janja, montou um roteiro de encontros com mulheres evangélicas de periferia, em Caruaru (PE), Rio de Janeiro, Ceilândia (DF), entre outros pólos, reconhecendo que a interlocução com esse público se dá também no feminino, no comunitário, no cotidiano. Sua presença reafirma que o governo tenta humanizar a relação e translacionar o discurso para o concreto.
Outro ingrediente estratégico: a deputada Benedita da Silva, evangélica e veterana da militância, afirma com convicção, coordena o núcleo evangélico do PT e atua como ponte entre igrejas e petismo. No passado, Benedita ajudou a confeccionar cartas destinadas à comunidade evangélica, tradição que Lula retoma agora com mais urgência.
E ainda mais emblemático é o desempenho de Jorge Messias, advogado-geral da União, cotado para o Supremo Tribunal Federal (STF) na vaga aberta com a aposentadoria antecipada de Luís Roberto Barroso. Integrante da Igreja Batista, Messias é dos interlocutores de Lula com bispos evangélicos. Sua possível indicação à Corte é interpretada por estrategistas como um aceno claro aos evangélicos — paralelamente ao modo como o ex-presidente Bolsonaro aventurou-se a indicar, no passado, o ministro “terrivelmente evangélico” André Mendonça. A expressão, ainda que jocosa, resume o simbolismo. Messias pode ser o “ministro do STF evangélico de Lula”.
Esses sinais convergem para uma hipótese central: Lula está arquitetando uma via eleitoral alternativa para 2026, onde o eleitorado evangélico, hoje fidelizado mais à direita, pode ser objeto de contestação ou fragmentação. A tática é clara: discurso adaptado, interlocução comunitária, indicação simbólica. É o reconhecimento de que “o segmento dos evangélicos” não é apenas um colar de votos conservadores, mas um público tipicamente pobre ou da periferia, que pode se sentir atraído se perceber que esquerda e fé não são incompatíveis.
Por outro lado, Bolsonaro, que há anos desfrutava de ampla hegemonia sobre esse bloco, enfrenta uma nova realidade. Fora do exercício do poder, condenado em diversas instâncias e com visibilidade reduzida, sua liderança sobre os evangélicos sofre desgaste. A narrativa “o salvador da fé” cede terreno à convivência com a rejeição, e o discurso de oposição — ainda que inflamado — tem menos penetração no cotidiano das bases.
Consideremos, ainda, que as pesquisas, em outubro de 2022, apontavam uma vantagem de Bolsonaro sobre Lula, entre os evangélicos da ordem: 66% a 28%. A magnitude da vantagem indica que a margem de manobra é grande, mas também que o esforço do petista exige persistência e demonstração de compromisso. Afinal, o segmento evangélico não é monolítico: é composto por diferentes denominações, classes sociais, e regiões.
Assim, o “ataque” de Lula a esse segmento (valha-me o termo de estratégia) não é apenas retórico, é metodológico: dirigindo-se à periferia evangélica, às mulheres, às instâncias menores da fé, evitando os debates culturais extremos que sempre favoreceram o bolsonarismo.
Este movimento não garante vitória automática. A desconfiança permanece. O PT e a esquerda têm histórico de dificuldade na interlocução com as comunidades evangélicas. Lula sabe disso e ele mesmo já admitiu. Mas justamente essa admissão abre uma janela: reconhecer a falha é o passo primeiro para consertá-la. O que se desenha agora é um esforço deliberado de construção de confiança, e isso, em política, muitas vezes se revela mais decisivo do que meros slogans.
Para 2026, o potencial de impacto é significativo: se Lula conseguir arrancar sequer uma fração relevante do eleitorado evangélico, especialmente nas camadas mais populares, poderá ampliar sua base eleitoral com menor dependência exclusiva da base tradicional de esquerda. Em uma eleição que tende a se polarizar menos na esquerda-direita clássica e mais em torno de coalizões amplas, a presença ou ausência dos evangélicos pode fazer diferença.
O fato de Bolsonaro se encontrar em situação de fragilidade institucional e simbólica, sem os instrumentos de governo para reafirmar sua liderança, favorece esse processo de migração. E as igrejas, sobretudo as que atuam em periferias e favelas, começam a sentir que “a esquerda” pode também se apresentar como aliada, e não apenas como adversária.
O que se observa é um lento mas calculado deslocamento de águas: o presidente Lula, percebendo que deixou de dialogar com um segmento estratégico, agora se reposiciona com elegância. Não há conversão ideológica, mas uma abertura pragmática, simbólica e eleitoral. Se for bem sucedida, poderá alterar o mapa político-evangélico brasileiro: reduzir a margem de vantagem do bolsonarismo, fragmentar o voto religioso conservador e oferecer à esquerda uma nova frente de interlocução. É, sem exagero, uma aposta de risco — mas também de alto potencial.
O recado para o bolsonarismo é claro: o que parecia terreno impropriável já não o é mais. A fé continua sendo força simbólica, mas quem domina o canal do diálogo tem vantagem. Lula está, agora, falando. E, ao que parece, está sendo ouvido.











