Revisão: Alana de Oliveira Ferreira
A exposição “Línguas africanas que fazem o Brasil”, com curadoria de Tiganá Santana, estabelece um diálogo fundamental entre a herança cultural africana e a formação da identidade brasileira, com narrativas visuais e conceituais que reconhecem a profundidade das influências africanas no nosso português. Além de nomes que chegam com a proposta curatorial de base, como Aline Motta e Rebeca Carapiá, a itinerância da mostra no Espírito Santo incorpora obras originais de três artistas locais, de modo a se articular com a identidade capixaba enraizada nessas presenças. Entre os nomes participantes, Castiel Vitorino Brasileiro, Natan Dias e Jaíne Muniz contribuem com obras que exploram a memória, a materialidade e a abstração como formas de reexistência.
Com palavras bordadas nos bastidores de entrada, destaca-se também a participação de Rick Rodrigues. Todas essas figuras são conhecidas do cenário contemporâneo capixaba, com histórico do mais extenso ao mais recente. São artistas com pesquisas poéticas que estabelecem pontes discursivas entre passado e presente, corpo e terra, palavra e símbolo, material e incorpóreo.
Castiel Vitorino Brasileiro apresenta “Me basta mirarte para enamorarme otra vez”, um estudo sobre abstração caligráfica que investiga seu pertencimento étnico por meio de grafismos que remetem a cosmogramas bakongos, desenhos sagrados da umbanda e diagramas de outras diásporas Bantu. A trama das marcas culturais Bantu serve como eixo para uma prática artística que transcende a representação literal e opera em um campo simbólico, no qual a escrita se torna gesto e o gesto se torna ritual.
Os cosmogramas bakongos, estruturas visuais que representam conceitos cosmológicos do povo Bakongo, são reinterpretados como mapas afetivos e políticos, nos quais a caligrafia não apenas documenta, mas performa. Essa abordagem permite que a artista explore a noção de tempo não linear, característica de muitas tradições africanas, nas quais passado, presente e futuro coexistem em um contínuo espiritual e material. A divisão e a percepção desse tempo cíclico é possível pelas ocorrências ou acontecimentos, chamados dunga, que perfazem n`ka-ma mia ntangu, contenções ou represamentos do tempo.
Os cosmogramas nos permitem visualizar essas relações temporais abstratas e concretas. Essa série de desenhos em pastel sobre papel preto funciona como um dispositivo de memória que não se limita a recordar, mas sim a reativar conexões com saberes ancestrais sempre presentes, o que afirma a persistência de sistemas de conhecimento africanos na contemporaneidade.

Essa abstração caligráfica não deve ser encarada como um exercício puramente formal. Trata-se de um método de inscrição do corpo negro e dissidente no espaço. A presença visual desse conjunto simbólico, tanto nesses desenhos quanto em outras formas de expressão brasileiras, herdeiras dos universos Bantu, questionam as fronteiras entre o escrito e o oral, o visível e o invisível, o sagrado e o profano. Sua prática evidencia como a linguagem visual pode agir como um vetor de reconexão com histórias fragmentadas pela diáspora, o que oferece um caminho para a reconstrução de identidades que jamais serão encerradas em categorizações simplistas.
Diante da série de desenhos de Castiel Vitorino Brasileiro, na última sala da exposição, observamos duas esculturas de metal. Natan Dias pesquisa a confluência entre materiais, tecnologias e memórias. Essas esculturas pertencem a série “Movimento” e utilizam o ferro para dar materialidade a estruturas que pulsam como um corpo coletivo. Quando observamos seus trabalhos, apenas parte das intenções declaradas verbalmente podem ser percebidas. Sua investigação fala sobre como o deslocamento da memória no espaço-tempo se materializa em peças que articulam a rigidez do metal com a noção de fluidez e transformação do manejar humano.
O ferro, como elemento, carrega uma história complexa: é associado à industrialização, à construção e à violência colonial e escravocrata. Porém, ele também evoca relações entre corpo humano, terra, comunidade, sobrevivência, cultivo, segurança, herança, expressão do manuseio e iconicidade dos objetos culturais cotidianos. Ao manipular esse material para evocar movimento e pulsação, Natan reapresenta suas conotações originárias e o transfigura em um laço conotativo alegórico com gestos ancestrais, como o manuseio de um facão ou uma enxada
Logo, essas esculturas podem funcionar como sistemas abertos e reconfiguráveis, nos quais a geometria e o movimento permitem diálogos entre tradições, entre o ancestral e o futurista. Sua forma é limpa, leve e concretista. Tal condição concretista poderia ser desviada, não fosse a reafirmação expográfica realizada pela escala: uma versão menor, como modelo, exposta sobre uma prateleira, ao lado do texto informativo, que nos leva a observar a escultura no chão, em torno da qual podemos circular. Esse efeito de distanciamento didático afasta a própria escultura para a condição de monumento, homenagem ou memória fossilizada.
O texto informativo aponta para outra direção, menos apartada, mais envolvente, não circunscrita ao objetual. Suas “peças de ferro reconfiguram o espaço, instaurando geometrias abertas que só existem em trânsito”. Há certa presença material nas peças de Natan Dias que pode ser capaz de nos afastar do simples artifício. Quanto mais essa presença é liberada, mais interessante torna-se a experiência de estar com o trabalho. Com atenção e tempo, cresce a expectativa por algo como uma espécie de cruzamento entre a transposição consistente de materiais e elementos essenciais específicos de uma cultura, realizada, por exemplo, pelo maya-kaqchikel guatemalteco Edgar Calel, em sua B’alab’äj (Pedra do Jaguar), e a solidez compositiva do sudanês Amir Nour, em seus modulares núbios.
Essa abordagem reflete uma compreensão da memória não como um arquivo estático, mas como um processo dinâmico que se desloca e se adapta conforme interage com diferentes contextos. A despeito do problema do distanciamento didático, “Movimento” explora como ferramentas contemporâneas podem ser mobilizadas para reativar conhecimentos tradicionais e construir uma linguagem visual que não se prenda a dualismos como formalista/conceitual ou figurativo/abstrato, mas que os integra em uma narrativa complexa e multifacetada.

Jaíne Muniz, por sua vez, apresenta duas obras em uma sala própria, uma pintura em tons de branco e azul e uma instalação com tecidos semitransparentes nas mesmas cores, acrescidos da frase “seu horizonte aqui”, afixada na parede ao fundo. Ambas as obras remetem, visualmente, ao mar. Com “O que a água levou” e “Ser-horizonte”, poderíamos pensar em elementos fundamentais, como água, o vento, movimento e terra como forças ativas na criação de linguagens que entrelaçam corpo e paisagem. Diante dessa pintura e dessa instalação, é difícil ir muito além de tais metáforas imediatas. Caso decidíssemos seguir a direção da abstração como desvio do real, compreenderíamos o resultado visual como um dispositivo que nos permite retornos reflexivos pela contemplação interessada e crítica. Mas, o referente da pintura é explícito e a simplicidade da forma, do arranjo e do tratamento físico não nos aponta caminhos ou desafios perceptivos.
A instalação, por outro lado, talvez pudesse se aproveitar dessa economia de elementos. Porém, a precariedade da montagem não assume o desembaraço da forma para sintetizar ideias inquietantes. Novamente, estacionamos em uma analogia entre elementos e ideias que, ou são evidentes ou carecem de continuidade. Como a epítome de um pensamento incompleto, “Ser-horizonte” trai o desejo de mostrar mais, de dizer mais. Nem sempre a redução funciona como o melhor caminho para a expressão de certas ideias.
A inserção desses três artistas na exposição “Línguas africanas que fazem o Brasil” amplia de modo significativo o alcance da mostra, que já havia sido apresentada como o recorde de público do Museu da Língua Portuguesa. A curadoria de Tiganá Santana demonstra sensibilidade ao reconhecer que a presença africana no Brasil não é um fenómeno monolítico, mas sim diverso e regionalmente específico. Ao incluir Castiel Vitorino Brasileiro, Natan Dias e Jaíne Muniz, a exposição evita uma homogeneização das contribuições africanas na atualidade. O Espírito Santo, com sua história particular de colonização e presença negra, fornece um terreno fértil para tais explorações. Essa abordagem corrobora a ideia de que a linguagem, seja verbal, visual ou corporal, é um campo de negociação constante, no qual identidades são afirmadas e transformadas.
Castiel Vitorino Brasileiro, com sua abstração caligráfica, evoca sistemas de escrita e símbolos que antecedem a colonização, além de propor uma linguagem visual que contorna a imposição do português como idioma exclusivo. Natan Dias, através de sua manipulação de materiais, examina como tecnologias e memórias coletivas podem ser reapropriados para contar histórias pela presença da forma. Jaíne Muniz, ao entrelaçar corpo e paisagem, sugere que a linguagem não reside apenas nas palavras, mas na relação sensorial com o mundo natural. Essa visão expandida de linguagem é central para a exposição, que desde o início busca destacar como as influências africanas se manifestam não apenas no vocabulário, mas na expressão visual, na entoação e nas estruturas de pensamento que subjazem ao português brasileiro.
Além disso, é sempre interessante ressaltar o papel da arte como veículo de educação e transformação social. “Línguas africanas que fazem o Brasil” é uma exposição pensada para a mediação cultural, ou seja, organizada de modo a facilitar o trabalho de diálogo com o público. A arte, nesse contexto, tanto pode ser percebida como um fim em si mesma, quanto como um catalisador para a reflexão e a ação, um convite ao público para reconsiderarmos narrativas históricas estabelecidas e reconhecermos a diversidade cultural como fundamento da sociedade brasileira. Essa exposição é uma demonstração de que a herança africana no Brasil não é um artefato histórico congelado, mas um campo dinâmico de forças que continua a moldar o presente e a inspirar futuros possíveis.












