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A presença das miudezas na figuração de Lila Nascimento

“Afeto e Memória” é a primeira exposição individual de Lila Nascimento no Espírito Santo. Aberta no Museu Histórico da Ilhas das Caieiras “Manoel dos Passos Lyrio”, o conhecido Museu do Pescador, a mostra traz um conjunto de pinturas em acrílica sobre tela, sobre objetos domésticos e assemblagens.

Os trabalhos e sua apresentação dialogam com a simplicidade do local. O modo de ser periférico, de habitar uma casa suburbana, de olhar os detalhes materiais da vida distante da ostentação consumista, estão ali. O Museu do Pescador, ainda que não seja propriamente uma casa, preserva características de ligações comunitárias quase familiares. Seu espaço não exibe a pompa e a cerimônia dos museus e galerias tradicionais. É preciso saber valorizar e lidar com essa condição. Sem suas idiossincrasias, os museus e as galerias confundem-se com shoppings insossos. Com identidade, um espaço de arte pede propostas que sejam capazes de escapar da frieza e do falso distanciamento das pinturas de recepção de consultório.

Lila Nascimento trabalha com figuração em níveis que excedem a expectativa de uma pintura inocente, sem deixar de utilizar essa aparência. Em um primeiro olhar, tudo parece estereotipado, inclusive a precariedade da técnica com intenções naturalistas. Um público habituado ao distanciamento meditativo de trabalhos abstratos tenderia a observar essas pinturas como algo simplório, ou que demandaria pouco esforço reflexivo. Tal distinção elitista costuma separar as produções e os saberes do povo de um lado e a Arte do outro. A manutenção dessa separação é parte do que possibilita que artistas modernos e contemporâneos executem estratégias de apropriação de conteúdos tidos como populares, os desloquem e rearranjem no contexto institucional da Arte. Há, nesses casos, um giro considerável ao nos perguntarmos quem executa a apropriação.

Quando um sujeito recorta e pinça elementos do universo do qual faz parte, os reorganiza e os instala em um espaço expositivo, temos mais chances de escapar dos efeitos exotizantes do sequestro dos saberes populares. Porém, essa sobreposição de camadas significativas não se dá de modo eficiente em todas os trabalhos que compõem “Afeto e Memória”. Se considerarmos o peso da figuração, como conjunto, a mostra é desbalanceada. Quando nos restringimos à pintura, é difícil ignorar a busca inócua do artista por certo esmero. Nesses momentos, o figurativo pouco ultrapassa a denotação.

Entre narrativa e literalidade, a pintura contemporânea opera como código histórico e reflexivo, capaz de absorver e ressignificar críticas e tradições. O valor narrativo está  associado à tradição pictórica ilusionista e representacional. Já valor o literal, vincula-se à materialidade e à autorreferencialidade modernistas. Tensionar esses dois aspectos e evidenciar processos culturais de construção das imagens são caminhos escolhidos por muitos pintores atuais para desenvolver estilo, posto que mais do que o estudo da materialidade, pulsam as origens e deixam-se ver as raízes daquela representação em específico. Esses são os casos, por exemplo, de Chris Clark, Maxwell Alexandre e Kerry James Marshall, para citar nomes que possuem visualidades aderentes às propostas pictóricas de Lila Nascimento.

Para além da pintura, as peças mais impactantes de “Afeto e memória” são aquelas em que as duas palavras que dão título à exposição se entrelaçam com nossa presença, sem apenas remeter a ideias e lembranças, mas com o uso dos objetos de memória icônicos. “Vó Dete, Vô Bide e Tucha” (2025) se faz com uma garrafa de café barata, que hoje seria considerada vintage, sobre a qual o artista reproduz em acrílica uma fotografia de seus avós maternos com o cão Tucha. Encontramos algo similar em “Da água que eu bebi”, com a moringa de cerâmica como suporte para a pintura. Os pequenos espelhos de moldura plástica laranja, as colheres de pau com rostos de familiares, a tábua de passar com o ferro antigo e pesado, exposta como um altar e uma oferenda, são composições que afloram do habitus do artista e vêm até nós. Ali, permanece a presença do que não mais está (sem lamento ou promessa), como deve ser uma memória saudável.

É certo que estamos dentro do universo da apropriação, mas apropriação de que? Há, nessa mostra, objetos, pinturas e instalação. O que permeia todas essas formas? Como suas estratégias criativas operam? Quais as consequências expressivas dessas escolhas?

Muito do trabalho de Lila Nascimento nos faz lembrar de trabalhos da Nova Figuração brasileira, nas décadas de 1960 e 1970. Nomes como os de Rubens Gerchman, Antonio Manuel e Nelson Leirner concretizaram um pressuposto de que os processos culturais na América Latina são marcados por uma constante mobilidade e por fronteiras instáveis entre sistemas simbólicos (como diria Martín-Barbero).

Quando retornamos para a atualidade, ainda devemos considerar que o pop e o popular se retroalimentam, e isso pode ser notado com nitidez através dos objetos culturais que remetem ao massivo, ao subalterno, ao periférico, ao pobre e à vida comunitária. Como resultado, as representações suburbanas e rurais brasileiras possuem décadas de acúmulo de elementos para uma imaginária potente, reconhecível e valorizadas em escalas íntima e coletiva. Ou seja, há valor no autorreconhecimento como periférico. Gerações de movimentações de imagens, sons e ideias entre o pop e o popular resultam em um entendimento imediato de uma identidade periférica. A pop art à brasileira já havia compreendido isso. Lila Nascimento é herdeiro dessa compreensão. Através dessas estratégias de apropriação dos elementos que tornam reconhecível sua origem, seja em escala pessoal ou comunitária, é possível criar arranjos expressivos para desafiar categorizações estanques e refletir a complexidade do contexto social e político de cada época.

Ainda que Lila Nascimento aponte para suas memórias familiares, trata-se de uma operação na intersecção entre arte, comunicação e vivência urbana. Algumas pessoas podem se conectar com esse emaranhado de símbolos, outras talvez apenas percebam o simplório e o inábil.

O que compreendemos como presença da memória, nesse caso, é a continuidade do cotidiano. Ao nos distanciarmos dos relatos genéricos e grandiloquentes, podemos perceber como os objetos e as ações de cada geração, de cada década, de cada grupo de pessoas acumulam camadas de intimidade. Alguns diriam que isso funciona para todos os lugares e sujeitos. Mas, há diferenças. Passeie pelos bairros de condomínios envidraçados ou gentrificados para o turismo, depois visite a periferia. Tente perceber em qual dos casos a memória afetiva é mais palpável. A cidade não é igual para todas as pessoas, tampouco a vida e as lembranças com as quais recobrimos suas praças, ruas, casas, cozinhas e quintais.

Ainda assim, como nos alerta Sônia Salzstein, a consciência das assimetrias entre centro e periferia deve recusar visões dualistas e essencialistas da cultura. Centro e periferia não são formações absolutamente separadas, mas interligadas em um mesmo sistema. Essa condição, por sinal, carreia o risco de fetichização das estéticas periféricas e sua pilhagem por sistemas de valores próprios do centro. Em alguma medida, a arte pode promover essa transfiguração assombrosa: uma xícara de café brega e recoberta de valor sentimental pode passar a ser um objeto de luxo de milhares de dólares apenas por ser cristalizada pelo mercado especializado. Felizmente, nem sempre a arte opera por esse caminho.

Lembro de “Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio” (Rubens Gerchman, 1966). Ali, não temos apenas estereótipo, mas um estudo iconológico da cultura popular, aliado à midiatização das estéticas suburbanas e à massificação da comunicação. Estávamos a poucos passos da virada tropicalista e da reafirmação, sem muita idealização nacionalista, de nossas identidades periféricas.

Como remeti à Nova Figuração, cabe ressaltar, assim como faz Luiz Renato Martins, que essa virada de interesse para a cultura popular e a iconografia suburbana não significou um retorno ao ecletismo volúvel da tradição visual brasileira pré-moderna, mas sim uma consolidação do sistema visual moderno, adaptado a uma nova realidade política e social marcada pelo autoritarismo e pela dependência. Nesse cenário, que tristemente se estende até nossos dias, o uso crítico das estéticas periféricas não foi mera influência de modelos estrangeiros, mas uma ação de adaptação e paródia. Os acertos de Lila Nascimento desviam do fetichismo que transforma as cicatrizes de nossos hábitos em marcas de produtos. Nesse desvio, trabalhos de arte permitem que a memória da margem se faça presente.

Revisão: Alana de Olveira
Fotografias: Ana Follador

Rodrigo Hipólito
Rodrigo Hipólito
Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Escritor, historiador da arte, crítico e podcaster. Professor do Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM-UFES, 2015-2020), do Departamento de Comunicação (DEPCOM-UFES, 2023-2025) e dos cursos de Pedagogia e Psicologia da Faculdade Europeia de Vitória (FAEV, 2015-2023). Editor da Revista do Colóquio e redator do site Nota Manuscrita.

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