Faz algum tempo venho destacando uma suposta epidemia que está a corroer nossa memória, em especial, nosso patrimônio artístico urbano. Nossos monumentos identitários estão se perdendo. Seja pelo esquecimento e abandono, seja pelo descaso. Seja pelo furto, que os transforma em quilos de metal em uma sucata, seja pela ação de vândalos. Seja pela ação de familiares… seja pela ação do poder público (que muitas vezes os criaram, mas que, por muitos motivos também os destroem).
Quem olha essa imagem aérea talvez nem mais conheça essa obra. Ela foi resultante de todo um esforço público para reconfigurar a área de aterro no norte da ilha de Vitória, o chamado aterro da CONDUSA. Uma obra de remodelagem da orla que tomou do mar o que hoje conhecemos como Praia do Canto, Enseada do Suá e muitos outros pedaços, por cima de onde se ergueram as bases da Terceira Ponte e metros quadrados de alto valor imobiliário – aos moldes cariocas do Aterro do Flamengo. Nas imagens a seguir, podemos ter uma ideia do tamanho dessa intervenção ambiental, feita em nome da mobilidade e da melhoria do sistema urbano na nossa cidade.
Entre as muitas estratégias para “humanizar” essa faixa de terra sequestrada do mar criou-se ao longo dos anos o que conhecemos como Praça do Namorados e a Praça dos Desejos – aliás, não poderia ser apenas edificações e avenidas, era preciso ter uma área, jardins, entre o mar e a terra tomada.
Com os anos esquecemos do mar que batia nas pedras onde hoje enfrentamos o drive-thru para um lanche rápido; ou ainda enfrentamos congestionamentos para chegar em casa ao fim da tarde – podemos também colocar combustível em nossos carros, onde outrora mergulhávamos no mar.
A paisagem muda. Trocamos a natureza pela urbanização – e nos tornamos vítimas de suas mazelas. O São Pedro, escultura de Carlo Crepaz, ocupa ainda hoje o terraço do antigo prédio. Mas ele não mais lança sua rede ao mar diante de si; nem vela pelos pescadores que atracavam aos seus pés – pescadores que se abrigavam em casas simples que lhes velavam o sono e os sonhos.
Mas a cidade precisa crescer. Seus fluxos se transformam. Concreto e asfalto cobre o mar e sua orla. Fica apenas o nome, Praia do Suá, Ilha de Santa Maria… e muitos outros perdidos, aterrados. Perdemos patrimônios naturais para que a cidade cresça.
Outrossim, os projetos de melhoramento urbano, como os do aterro da CONDUSA, preparavam uma área mais que de especulação imobiliária e de mobilidade urbana. Na sua poética proposta a grande área de convívio humano, um parque linear se desenharia. E nesse projeto de cidade-lazer surgiu a grande intervenção estética que inovou o cenário urbano capixaba: uma fonte que compartilhava com um histórico das águas úteis do período colonial, mas reconfigurada como uma fonte contemporânea: monumento à Paz. Projeto concebido pelo arquiteto Gregório Repsold e numa execução de Ioannis Zavoudakis (o Grego, como é conhecido no meio artístico). Resultou dessa parceria do poder público com a genialidade desses dois artistas um projeto que nos presenteou com um espaço multidimensional.
Eu tive a felicidade de conhecer essa obra assim como ela se apresenta agora à maioria de vocês – que provavelmente a desconhecem assim. Mas, os tempos de dengue em 1999 chegaram. Uma epidemia se espalhou no nosso estado. E foi decretado o fim das águas públicas. As fontes e chafarizes foram silenciados e secos. Mesmo quem mora no Centro da capital deve lembrar das fontes e do lago do Parque Moscoso secos. Buracos vazios e sem vida. Mas, era uma emergência sanitária.
A ordem para combater o mosquito se estendeu por todo o estado. Aliás, a vida é o nosso maior bem. Mas, há também rumores de que, no caso do Monumento ao Ano Internacional da Paz (1987), a intervenção de um magistrado, morador das cercanias, ficava incomodado com o banho público de alguns moradores pobres naquele lago artificial. São rumores.
Mas passada a epidemia de dengue, o lago e as fontes do Parque Moscoso voltaram a sua forma original. Encantam os olhos dos que por lá passeiam, trabalham, levam seus filhos.
O novo projeto urbanístico da Prainha, em Vila Velha, redefiniu a ideia de fonte… e mesmo da ideia de banhos públicos. Crianças e adultos se refrescam nos jatos de água e tornam mais frescos os nossos quentes dias de verão.
Entendo a necessidade no final dos anos de mil novecentos e noventa de conter as águas limpas e paradas. Todo o Brasil se preocupou com isto. Algumas cidades colocaram grande quantidade de cloro em suas fontes e elas permaneceram iluminando as noites de seus cidadãos. Outros, a maioria delas, simplesmente as esvaziou – o caso da nossa capital. E uma outra parcela as aterrou, sumindo definitivamente com esse mobiliário urbano de muita valia na história das nossas cidades – seja como águas úteis, no período colonial; seja como local de encontros e de romances nos anos de 1960; seja como simples deleite e frescor em jardins públicos no país. Elas estavam lá!
Em Vitória, o poder público decidiu por destruir parcialmente a obra de Repsold e de Ioannis. Todo o projeto estético da praça foi apagado, restando apenas a parte dos globos (alias, recentemente restaurados pela Prefeitura Municipal).
Danificar o patrimônio artístico de nossa capital ao longo dos anos que sucederam a epidemia da dengue, lesou parte de nossa memória. Certamente, nenhum morador de rua toma mais banho em suas águas. Mas noivas ainda tiram fotos nessa imagem do mapa mundi que as inspiram. O monumento se ressignificou e segue existindo e construindo outras memórias.
Mas, rumores novamente assolam esse monumento. As obras, ou o projeto de melhoria da mobilidade urbana naquela região, ameaçam destruir definitivamente essas peças que ainda reservam um pouco do frescor de sua criação.
São boatos que prometem ampliar pistas de ciclismo e pedestre. Podemos pensar que ampliar as pistas de skate e outras melhorias naquela região levarão ao total desaparecimento das peças. Apenas dois anos após sua restauração.
São boatos, mas ninguém mais toma banho na praça em frente ao suposto magistrado que se incomodava. Apenas boatos!
Revisão: Giuliano de Miranda











