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A experiência nas esculturas de Re Henri ou Como habitar ruínas

A mostra “O fim me parece o nascer do sol”, de Re Henri, aberta no Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), apresenta esculturas de escala humana, nas quais a artista articula uma investigação conceitual sobre o luto através de uma linguagem minimalista, porém não limitada à busca de qualquer pureza abstrata. Com curadoria de Neusa Mendes, a exposição transita do domínio do objetual para o experiencial e propõe a entrada do espectador em um campo de forças simbólicas tensionado entre a memória íntima e o trauma histórico.

O ponto de partida conceitual reside na justaposição de dois eventos traumáticos: a morte do pai da artista e o bombardeio atômico de Hiroshima, que ocorreram em datas convergentes. Tal confluência não opera como metáfora, mas como uma estrutura de base que organiza a leitura das peças. Re Henri elege materiais pobres e de origem industrial (espuma, isopor, cimento, esponjas de cozinha) e submete-os a um processo de ressignificação que extrai deles certa potência expressiva de forte impacto visual. Fragmentos, originários de seu próprio colchão, deslocam-se de sua função utilitária e elevam-se à condição de vestígios arqueológicos de memórias dilaceradas, ao passo que volumetrias em espuma pintada com cimento constroem uma paisagem mental de ruína e potencial reconstrução.

A cor, especificamente o amarelo-ouro, assume um protagonismo cromático e semântico vital na economia da mostra. Longe de ser um elemento meramente pictórico, ela se aplica como um revestimento que qualifica a presença física dos objetos e irradia uma luminosidade ambivalente. Essa cor funciona como signo duplo: é a luz devastadora da explosão nuclear e, simultaneamente, o brilho do amanhecer que anuncia um novo ciclo. Tal dualidade é um dos motores investigativos óbvios da exposição, materializada em formas que oscilam entre o sólido e o efêmero, o pesado e o leve.

Do que, talvez, a expografia se esqueça, é do problema entre alusão e teatralidade. Instalar um bloco em escala humana de material industrial (seja metal ou espuma pintada) sobre o chão cinza de uma galeria, recostá-lo sobre a parede, construir um painel de células similares (sejam de metal ou esponjas de cozinha), resulta em uma situação espacial da qual não podemos desviar. Essa questão foi enfrentada por Rosalind Krauss e Michael Fried, em sentidos diversos.

Enquanto Krauss identificou, como uma contradição fundamental na obra de artistas como Donald Judd e Dan Flavin, a persistência de efeitos ilusórios, apesar da rejeição programática do ilusionismo, Fried concentrou-se no pretenso literalismo daquelas propostas e o caracterizou como teatralidade. Krauss demonstrou que as esculturas abstratas minimalistas, longe de serem meramente literais, operavam por meio de alusões e ilusões que desestabilizavam premissas visuais estabelecidas e questionavam a tradição pictórica europeia a partir relações fenomenológicas específicas. Fried, por sua vez, dizia que a literalismo minimalista degenerara em objetidade, uma condição de não-arte que teatralizava a relação com o espectador e a submetia à duração e à contingência, em oposição à instantaneidade e à autonomia da arte modernista. Além disso, muito do que artistas do objeto, como Judd, Frank Stella e Robert Morris defendiam em seus escritos, parecia em descompasso com suas realizações práticas. Quando assimilamos essas noções de ilusionismo e teatralidade e observamos esculturas fora do cânone naturalista pré-moderno, podemos associá-las a uma ampla variedade de práticas artísticas pós-guerra, desde a escultura cinética até os happenings. Isso significa que a simples recusa da forma ilusionista, quando apresentada em uma escala humana, não abandona a complexidade das alusões, recalcada no Minimalismo, tampouco foge da teatralidade como antagônica do purismo abstrato.

Os objetos de Re Henri possuem qualidades dramáticas que não podem ser ignoradas. Essa dramaticidade perde com iluminações frias e disposições assemelhadas ao canteiro de obras higienizado do cubo branco. A presença marcante de cada peça pede o aconchego exibicionista do palco, mas não o encontra. Essas esculturas impõem uma relação corporal e personalista com o espaço e com o público. A dimensão arquitetônica das instalações, o que inclui as maquetes, convida a um percurso físico que espelha um caminho interior, em um nítido investimento para criar uma experiência presencial que provoque reflexão. O domínio da linguagem minimalista não reside na simplificação formal, que poderia empobrecer a complexidade do conteúdo, mas antes na condensação de intensidades que extrapolam a figuração explícita.

Cabe ainda dizer que a produção de Re Henri dialoga com uma tradição da arte contemporânea que explora os limites entre o orgânico e o industrial, o psíquico e o material, com ressonâncias de artistas como Olafur Eliasson, Louise Bourgeois e Anish Kapoor, como ressaltado pela própria artista. Assim como para essas referências, abraçar o espetacular e torcer o espaço pela presença das cores e dos materiais de seus objetos e instalações seria um tratamento muito mais proveitoso para a exibição de seus trabalhos. No entanto, Henri procura por uma voz própria, na qual sua formação em psicanálise informa uma prática que trata a matéria como sintoma e a forma como elaboração. A exposição, nesse sentido, surge como um dispositivo espacial que convida o espectador a um exercício de introspecção sobre a perda, a memória e a capacidade de recomeçar.

Nesse ponto, encontramos o que excede a imediata afirmação temática do luto: a ruína.

Mais de um século atrás, Georg Simmel, no ensaio “A Ruína”, pensou que existe uma balança entre a vontade do espírito e a necessidade da natureza. A arquitetura tentaria equilibrar essa balança, mas os vestígios e os fragmentos levariam ao desequilíbrio. Para ele, ao observar uma ruína, somos confrontados com esse desbalanço inevitável e percebemos como a vontade de espírito da obra humana se quebra diante da natureza (vida e morte).

É curioso perceber como a ruína já surgia no imaginário romântico do século XIX com essa mesma complexidade. Fragmentos de arquiteturas do passado eram retirados do seus contextos e apresentados como ficções que ressaltavam o tempo e as demais forças do mundo natural como superiores à vontade humana, em parte, como um lembrete de que apenas podemos ter um futuro a partir da perda. A ruína nos força a dissolver a perda na esperança de que há algo por vir. Essa é a sensação de que ainda estamos aqui.

Brian Dillon, no livro “Ruins”, afirma de modo mais direto a ruína como o lugar do luto e a fragmentariedade como condição para a renovação e a continuidade da vida. Os vestígios e o desgaste dos materiais transformados pelo humano são capazes de nos atirar para um tempo sem cronologia fixa. Construir objetos arruinados é uma estratégia potente para processar um presente que é fruto de vários passados. Se a ruína é um fragmento com futuro, o luto é a nossa forma de habitá-la.

Revisão e fotografias: Alana de Oliveira

Rodrigo Hipólito
Rodrigo Hipólito
Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Escritor, historiador da arte, crítico e podcaster. Professor do Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM-UFES, 2015-2020), do Departamento de Comunicação (DEPCOM-UFES, 2023-2025) e dos cursos de Pedagogia e Psicologia da Faculdade Europeia de Vitória (FAEV, 2015-2023). Editor da Revista do Colóquio e redator do site Nota Manuscrita.

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