“Uma regra: não admita nada, negue tudo.” A frase dita por Roy Cohn no filme ‘O Aprendiz — disponível na Amazon Prime Video — volta à memória quando lembramos da noite em que Donald Trump se recusou a reconhecer a derrota eleitoral de 2020. Aquele gesto, que tensionou as estruturas democráticas dos Estados Unidos, não ficou restrito às fronteiras americanas: inaugurou um estilo político que se replicou em diversos países, inclusive no Brasil. Desde então, a negação sistemática — do resultado eleitoral ao erro cotidiano — tornou-se instrumento de sobrevivência, de mobilização e, sobretudo, de poder. A lição do filme deixou de ser ficção para se tornar método.
No longa, Cohn, um advogado cheio de larga-e-me-deixa retórico, não é apenas um conselheiro: ele tutela Trump. Forma-lhe o instinto, esculpe-lhe o olhar político, molda-lhe a relação com a verdade. Ensina que admitir falhas enfraquece, que reconhecer culpas abre brechas, que aceitar limites entrega o enredo ao adversário. E, em certo momento, completa a cartilha de maneira brutal: “esteja disposto a tudo para vencer.” Nele, “tudo” significa exatamente o que parece — negar, inverter, atacar, confundir. É a vitória como valor supremo, acima de qualquer outro.
Trump internalizou essa filosofia. Perdeu a eleição, mas não perdeu o personagem. Preferiu transformar a derrota em fraude, a contagem em conspiração, a democracia em palco de disputa narrativa. Repetiu, passo a passo, a liturgia de Cohn: não recuar, não ceder, não reconhecer. E cada novo revés — jurídico, político ou simbólico — foi seguido pelo mesmo ritual: negar para sobreviver; atacar para reorganizar o enredo; insistir para desgastar a verdade.
Esse método se perpetua em seu segundo mandato — não-consecutivo, é bom lembrar — e em todas as suas decisões pouco diplomáticas, mas sempre egocêntricas. E fez escola: sua metodologia se espalhou. Líderes de diferentes países, de realidades distintas, adotaram a negação como identidade. No Brasil, vimos emergir versões tropicais desse estilo: derrotas transformadas em injustiças, investigações convertidas em perseguições, contradições explicadas com novas contradições. O trumpismo deixou de ser fenômeno americano e se tornou categoria política internacional.
Bolsonaro negou, o quanto pode, a pandemia de Covid-19; Lula nega, o quanto consegue, o caos na segurança pública brasileira — para ele, está tudo sob controle. Essa cartinha do negacionismo como política de governo reverbera pelos governos país afora.
Essa lógica, aliás, tem sido marcada por gestos de infalibilidade de Trump. Declarações belicistas, movimentos militares, sanções expansivas — tudo revestido pela gramática de quem não admite equívoco. Como lembram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em ‘Como as Democracias Morrem’, regimes não desabam apenas por golpes abruptos; desidratam por dentro. A erosão começa quando líderes eleitos passam a tratar adversários como inimigos, a negar derrotas evidentes, a desacreditar instituições de controle e a romper com a autocontenção que sustenta o jogo democrático. As leis permanecem, mas seu espírito se esvai; as estruturas seguem de pé, mas suas vigas internas são corroídas. É assim que a política deixa de ser competição e passa a ser guerra — e é assim que democracias morrem: não com explosões, mas com rachaduras invisíveis que se acumulam até o colapso.
O prólogo do jeito Trump de governar começa no antigo programa televisivo O Aprendiz. Muito antes da Casa Branca, o hoje presidente já interpretava o papel do chefe infalível, imbatível, inquestionável. Cada episódio reforçava a persona do líder que decide destinos, elimina desafetos e jamais vacila diante das câmeras. A política, anos depois, apenas ampliou o palco — e conservou o personagem intacto. Não por acaso, o filme que narra sua formação leva o mesmo nome: todo líder carrega o seu próprio aprendizado.
Mas todo método cobra seu preço. A negação permanente corrói instituições, dissolve consensos mínimos, embaralha a percepção pública dos fatos. Democracias podem suportar divergências profundas, mas não sobrevivem quando até a realidade é objeto de disputa. Quando um líder afirma vitória onde houve derrota — e parte da sociedade aceita essa versão — o que se abala não é apenas um processo eleitoral: é o pacto que sustenta a convivência.
O Aprendiz, o filme, que revisitei no último fim de semana, ilumina a gênese desse estilo. A política mostra as consequências. E a pergunta que resta, para os Estados Unidos, para o Brasil e para o mundo, é simples e urgente: até quando se sustentará uma cultura política que considera a verdade um obstáculo e a negação um instrumento de governo?











