O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) restringiu a atuação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) na regulamentação do ECA Digital (Estatuto Digital da Criança e do Adolescente) e abriu uma disputa no setor de comunicações. Por trás da polêmica, está o confronto sobre quem vai fiscalizar as big techs e o uso de IA (inteligência artificial) no Brasil.
Ao sancionar o estatuto -que estabelece novas responsabilidades para plataformas digitais (como redes sociais e jogos) e cria instrumentos para proteger crianças e adolescentes na internet- Lula vetou a participação da Anatel na operacionalização da lei. Depois, por meio de decreto, designou a ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados) como a autoridade administrativa para proteger crianças e adolescentes no ambiente digital.
Empresários e especialistas em regulamentação do setor cobram mudanças e afirmam que a decisão do governo é um “jabuti” regulatório que trará prejuízos na fiscalização das big techs. “É um golpe na Anatel”, afirma a empresária Vivien Suruagy, presidente da Feninfra, entidade que representa mais de 137 mil empresas de infraestrutura e prestadoras de serviços de telecomunicações.
“Existe o receio pueril de fazer o óbvio: dar à Anatel o papel que lhe é natural de regular esse novo mundo digital”
Para ela, o governo Lula escolheu o pior caminho, em vez de fortalecer a Anatel, uma agência reguladora já constituída, com mais 1.300 servidores concursados, estrutura em todo o país e respaldo internacional. “Começar tudo do zero vai gerar mais custos ao Estado”, diz. “A Anatel tem servidores da mais alta qualidade e seus conselheiros conduzem com alto conhecimento técnico todos os assuntos.”
A lei do estatuto foi sancionada em setembro, após as denúncias feitas pelo youtuber Felca sobre a monetização indevida e a adultização infantil nas plataformas online. Na lei, o Congresso deu o protagonismo à Anatel para ordenar o bloqueio de empresas infratoras. Mas Lula vetou o dispositivo alegando inconstitucionalidade, pois a organização da administração pública federal é competência privativa do presidente da República.
O tema é considerado sensível porque a ANPD, vinculada ao Ministério da Justiça, poderá ser a agência que supervisionará as questões de IA e fake news, caso avancem projetos que já tramitam. Nas negociações com o governo Donald Trump do tarifaço de 50%, o governo Lula também colocou na mesa a regulamentação das big techs, incluindo a moderação de conteúdo.
O governo enviou ao Congresso a MP (medida provisória) que transforma a ANPD em agência reguladora. A MP cria uma carreira de especialista em regulação de proteção de dados e altera a legislação para consolidar a proteção de dados pessoais no Brasil, incluindo a aplicação do ECA Digital para proteger crianças e adolescentes online.
O senador Alessandro Vieira (MDB-SE), relator da MP e autor da lei do ECA Digital, diz que não identifica risco na escolha da ANPD. “Ela vai conseguir fazer os ajustes de estrutura para que tenha capacidade de fazer o trabalho”, diz o senador. “A Anatel tem já outros focos, talvez tenha sido esse o ponto que motivou essa definição.”
Vieira antecipa que não pretende incluir no parecer da MP atribuições à ANPD relativas à fiscalização do uso de IA. “Não queremos inovar em nada. Agora, se eventualmente lá na frente se entender que tem que ser a ANPD, ela vai ter que passar por uma nova reformulação para que tenha setor de estrutura suficiente para arcar com isso”, diz.
O especialista em regulação de serviços digitais, Ricardo Campos, professor na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, vê retrocesso. “O Brasil está caminhando para algo que não existe precedente no mundo, de atribuir a uma agência de proteção de dados competência regulatória para regular big techs. É uma jabuticaba brasileira”, avalia Campos, que ajudou o senador Vieira na elaboração do projeto do ECA Digital.
“Sabe quais são as agências reguladoras que são escolhidas para aplicar a lei europeia? A Anatel da Alemanha, a Anatel de Portugal e assim em todos os outros países”, ressalta. “O Brasil será o único país do mundo que não vai conseguir dialogar, sendo que a regulação de big techs é um desafio global de coordenação”, enfatiza. Para ele, a decisão é casuística, que trará consequências negativas para essa coordenação global entre agências.
“Nunca houve qualquer restrição à atuação da Anatel”, afirma a Secom (Secretaria de Comunicação) da Presidência. Segundo o Palácio do Planalto, a MP cria 200 cargos de especialista em regulação de proteção de dados e 18 cargos em comissão e funções de confiança, por meio da transformação de 797 cargos efetivos vagos, sem aumento de despesa.
Procurada, a Anatel afirma que respeita a decisão presidencial e compreende que o veto decorre de uma interpretação jurídica sobre vício de iniciativa. Mas ponderou que, considerando que a ANPD foi criada há apenas cinco anos e transformada em agência reguladora recentemente, é natural que haja preocupações quanto aos desafios regulatórios e operacionais decorrentes das novas atribuições que lhe foram conferidas. A Anatel tem 28 anos.
“Toda intermediação com o setor digital depende estruturalmente das redes de telecomunicações, seja no acesso a plataformas, na circulação de dados ou na oferta de serviços, cuja regulação é competência da Anatel”, diz.
A Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net), associação que representa as principais plataformas e provedores de serviços digitais em operação no Brasil, como Meta, TikTok, Google, Amazon e Mercado Pago, afirma que a definição da autoridade competente para o tema insere-se no âmbito das decisões institucionais e políticas legitimamente conduzidas pelos poderes.
“Independentemente da configuração escolhida, será essencial garantir que a autoridade designada disponha das condições técnicas, operacionais e de governança necessárias para manter um diálogo técnico e equilibrado com todos os agentes envolvidos na implementação da política pública.”
Em nota, o Ministério das Comunicações afirma que apoia o fortalecimento da atuação da Anatel na regulamentação da cibersegurança, que atualmente está em andamento.
O Ministério da Justiça ressalta que a ANPD já possui experiência consolidada e que o modelo segue a tendência internacional, em que autoridades de proteção de dados também são responsáveis por casos complexos envolvendo direitos em ambientes digitais. A ANPD não respondeu ao pedido de informações.











