Pela primeira vez em mais de um século, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) será presidido por uma mulher. A desembargadora Janete Vargas Simões, eleita por unanimidade, assumirá o comando do Poder Judiciário com a marca da experiência, do diálogo e da energia. Ele tem 35 anos de magistratura.
Natural de Barra de São Francisco, formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e mestre em Direito e Garantias Constitucionais, ao longo da carreira, a desembargadora Janete acumulou uma série de funções de liderança: foi presidente da Associação dos Magistrados do Espírito Santo (Amages), dirigiu a Escola da Magistratura, presidiu o Fórum Nacional dos Juizados Especiais (Fonaje), coordenou por uma década os Juizados Especiais e liderou o Núcleo de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec). Também esteve à frente da Comissão de Soluções Fundiárias do TJES e foi vice-presidente e corregedora-geral do Tribunal Regional Eleitoral.
Em entrevista exclusiva ao ES Hoje, a desembargadora Janete falou sobre a construção da candidatura, suas metas à frente do TJES e os desafios da carreira. Como mulher, na oportunidade também fala da maternidade, a importância da escuta e do diálogo, sobretudo, no Direito e no serviço público.
ES Hoje – Como foi construída sua candidatura à presidência do Tribunal?
Janete Vargas Simões – Foi uma construção muito natural, fruto da minha própria trajetória. São 35 anos de magistratura em que sempre mantive um contato muito próximo com a sociedade. Eu nunca fui uma juíza de gabinete, daquelas que se fecham e se isolam. Passei por comarcas pequenas, como Mantenópolis, Ecoporanga, Pancas e Barra de São Francisco, e desde o início busquei participar da vida da comunidade. Naquela época, existiam os clubes de serviço, como Lions e Rotary, além da maçonaria e das escolas locais. Eu estava sempre presente, participava ativamente. Gostava de ouvir as pessoas, entender as demandas, construir soluções. Acho que esse perfil de atuação, muito presente e com energia para realizar, foi o que naturalmente me levou até aqui. Minha candidatura não foi algo planejado estrategicamente com antecedência, mas construída com base em uma caminhada constante, com projetos e envolvimento real com o Judiciário e a sociedade.
A senhora esperava ser eleita por unanimidade?
No fundo, a gente sempre alimenta essa esperança, porque é o reconhecimento dos colegas. Mas, quando o resultado saiu, confesso que fiquei emocionada. Foi uma bela surpresa. A unanimidade carrega um simbolismo muito forte. Representa confiança, respeito e também aumenta muito a responsabilidade. Eu recebo essa unanimidade com humildade e consciência do tamanho do desafio. Tenho clareza de que cada voto ali é também um compromisso com o diálogo, com a transparência e com uma gestão participativa. Isso me motiva ainda mais a entregar o melhor.
Houve algum descontentamento de outros desembargadores que tentaram se viabilizar para a presidência?
Não. Tivemos um processo muito respeitoso e transparente. É natural que, em uma eleição, haja mais de um nome interessado, mas conseguimos conduzir tudo com muito diálogo e cuidado para evitar ruídos. Somos apenas 30 desembargadores, e manter boas relações é essencial. Eu sempre prezei por isso. Conversamos com todos, apresentamos as ideias e construímos pontes. Essa harmonia foi fundamental para o resultado final.

Quais são as prioridades da sua gestão?
Minha primeira grande meta é avançar na agilidade dos julgamentos. Isso é essencial para garantir uma Justiça mais célere e eficiente. Também pretendo dar continuidade aos projetos já iniciados pelas gestões anteriores. O Poder Judiciário não pode funcionar como uma administração pessoal, que começa do zero a cada troca de comando. Hoje temos um comitê de planejamento que envolve magistrados, servidores, sindicatos e setores administrativos. É nesse espaço que os projetos são discutidos e amadurecidos, e é fundamental respeitar essa estrutura. É claro que alguns ajustes serão feitos, isso é natural em qualquer gestão, mas sempre com foco em aprimorar e entregar mais. A ideia é caminhar adiante, com responsabilidade e visão institucional.
Como pretende conduzir a relação com os demais Poderes?
Com muito diálogo, sempre. Essa é uma característica que carrego comigo. Sou mediadora certificada pelo CNJ, conciliadora, coordenei os Juizados Especiais por mais de dez anos e idealizei a Justiça Comunitária. Minha trajetória no Judiciário sempre esteve muito ligada à construção de consensos e pontes. Acredito profundamente que o diálogo qualificado é capaz de resolver impasses e evitar conflitos desnecessários. A relação com os demais Poderes será pautada por respeito mútuo, cooperação institucional e clareza de papéis. Cada Poder tem sua função constitucional, mas todos compartilham responsabilidades diante da sociedade.
Que mensagem sua eleição envia para as mulheres do Direito e do serviço público?
A mensagem é clara: é possível. É possível chegar onde você deseja, mesmo diante dos obstáculos. A educação transforma. A determinação abre caminhos. Haverá momentos difíceis, especialmente para conciliar maternidade e carreira, mas é nesses momentos que o foco faz diferença. Meu conselho é: não desistam. Aproveitem o tempo de vocês com sabedoria, busquem capacitação e mantenham o olhar firme no objetivo.
Expectativas para o próximo biênio
Há planos para aproximar ainda mais a Justiça da população mais vulnerável?
Sim. Esse é um compromisso pessoal. Fui uma das idealizadoras da Justiça Comunitária, criada em 2004, e acredito muito nesse modelo. Levamos toda a estrutura do Judiciário aos municípios, magistrados, mediadores, conciliadores, Ministério Público, Defensoria, advocacia e realizamos audiências diretamente com a população, geralmente aos sábados. É um trabalho intenso, mas muito gratificante, porque aproxima a Justiça de quem mais precisa. Muitas vezes, dentro dos gabinetes, não conseguimos perceber de forma clara a realidade de quem está buscando um direito ou enfrentando um processo. Estar presente, ouvir, sentir as dificuldades de acesso à informação e à Justiça é fundamental para que possamos oferecer respostas mais humanas e eficazes.
Como avalia o uso da inteligência artificial no Judiciário?
A inteligência artificial é uma ferramenta indispensável para os tempos atuais. Não há volta. Ela agiliza rotinas, auxilia na tramitação processual e permite que magistrados e servidores concentrem esforços em tarefas mais complexas. Mas é preciso ter clareza de que quem comanda a tecnologia é o ser humano. Cada processo envolve vidas, famílias, empresas. Por isso, o olhar humano jamais pode ser substituído. A inteligência artificial deve servir como apoio, não como substituto. É um instrumento poderoso, desde que usado com responsabilidade e critério.
Mulher e o Poder Judiciário

O que muda com uma mulher na presidência do TJES?
É um marco histórico. Foram 71 presidentes ao longo de mais de um século, todos homens. Estar nesse lugar hoje é, antes de tudo, uma demonstração de que é possível romper barreiras. Eu não acredito que exista diferença de capacidade entre homens e mulheres. Talvez tenhamos um olhar mais atento a certos detalhes ou uma sensibilidade diferente em algumas situações, mas em termos de competência e liderança, somos igualmente aptas. O que as mulheres precisam é de oportunidade e condições. Isso passa por políticas públicas, rede de apoio, acesso à educação e espaços de decisão. Quando essas condições existem, o mérito aparece naturalmente. Eu cheguei até aqui por capacitação, trabalho e dedicação; e acredito que toda mulher pode trilhar esse caminho.
O que é ser mulher no Judiciário?
Para mim, foi sempre uma experiência de respeito. Nunca senti qualquer diferença ou dificuldade por ser mulher. Passei por todas as áreas, criminal, família, fazenda pública, júri e sempre encontrei respeito dos colegas, servidores, advogados e das partes. O Judiciário é um espaço que deve ser ocupado com competência, e quando isso acontece, o reconhecimento vem naturalmente. Ser mulher no Judiciário é, acima de tudo, contribuir com a nossa visão e nossa força para a construção de uma Justiça mais completa.
Qual foi o maior desafio da sua carreira?
Sem dúvida, o início. Quando passei no concurso da magistratura, em 1990, meus filhos eram muito pequenos. Eu saía de casa na segunda-feira bem cedo, por volta das cinco da manhã, e só voltava na sexta. Foi um período muito difícil. O sentimento de mãe pesava muito. Era um misto de alegria por estar realizando um sonho profissional e dor por estar longe deles. A rede de apoio foi essencial: minha família, meu marido – que também é magistrado -, foram fundamentais para que eu conseguisse seguir em frente. Essa fase me ensinou muito sobre força, organização e propósito.
Como concilia os papéis de mãe, esposa, …?
(Risos) Jogando nos trinta! A mulher tem essa habilidade incrível de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Eu sempre tive um perfil desafiador, de buscar soluções e organizar as demandas de forma prática. Nunca foi fácil, mas sempre foi possível. Acho que essa capacidade de conciliação é um dos nossos grandes trunfos.
Algum caso marcou sua trajetória e mudou sua visão sobre a Justiça?
Sim. Quando fui titular da Vara do Júri em Vila Velha, no final dos anos 1990, lidei com crimes muito graves. Era uma vara única para toda a cidade, e isso significava enfrentar casos pesados todos os dias. Nessa época, comecei a cursar Psicologia Jurídica e esse estudo me trouxe reflexões profundas. No júri, há sempre duas narrativas fortes, a da acusação e a da defesa e, quando não há provas concretas, o desafio de compreender onde está a verdade é enorme. Aquilo me marcou porque me fez perceber que a Justiça é feita também de escuta, de análise cuidadosa e de humanidade. Não existe verdade absoluta, e o nosso papel é buscar o mais próximo possível dela, com responsabilidade.
Em algum momento pensou em desistir da carreira?
Nunca. Desde criança eu sabia o que queria. Meus pais tinham um cartório no interior, na frente da nossa casa, e era lá que eu e meus irmãos passávamos as tardes. Com dez anos de idade, eu já acompanhava minha mãe em casamentos e registros. Aquilo me encantava. O cartório foi meu jardim de infância e também minha primeira escola. Eu cresci dentro do universo jurídico, e isso moldou meu caminho com muita clareza.
Quem é sua principal referência pessoal?
Minha mãe. Uma mulher extremamente forte, determinada e visionária. Vinda de uma família simples, enfrentou dificuldades financeiras, mas foi uma das primeiras a passar em um processo seletivo e conquistar um cargo público no município. Isso transformou não apenas a vida dela, mas de toda a família. A força, a disciplina e o foco que ela teve me inspiraram profundamente. Tudo o que construí tem muito da educação e do exemplo que recebi dela.











