A escravidão é uma mancha na história da humanidade. A documento da abolição, assinado pela princesa Isabel, não resolveu. Isso porque os donos de engenho, apesar dos benefícios por terem “perdido” a mão de obra, não queriam perder o poder entre a vida e a morte das pessoas que trabalhavam para eles.
Prova disso é que, mesmo com a Lei da abolição assinada, a cidade de Campinas, em São Paulo, foi a última do Brasil a abolir, mantendo o regime até o ano de 1920, 32 anos depois. A Mauritânia tornou a prática ilegal apenas em 1981!
Na tentativa de tentar compreender o que leva o ser humano a cometer tantas atrocidades contra um semelhante, conversamos com o professor José Antônio Martinuzzo.
Ele é pós-doutor em psicanálise pela Universidade do Rio de Janeiro (UERJ) e comenta sobre o comportamento nessa fase trágica da história de um povo. “A violência contra o semelhante, com base na sua desumanização ou na objetificação, no campo da psicanálise, pode ser observada, entre outros, como uma questão ligada aos processos de identificação subjetiva e intersubjetiva, ancorados no que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”. A diferenciação entre mim e outro, seja um indivíduo, seja uma comunidade, é usada como um fundamento de consolidação das identidades, uma vez que identidade surge como uma ilha num oceano de diversidade”.
A história é sempre contada pela ótica do vencedor. Isso significa que o colonizador, ao se deparar com o desconhecido, prefere destruir que entender. E todo esse apagão histórico fortaleceu ainda mais as falas a respeito dos negros, que foram até considerados pela igreja como sem almas.
“A questão se agrava quando o “narcisismo das pequenas diferenças” serve de instrumento para criar alvos para a agressividade do grupo, colocando-se o ódio ao diferente como um afeto agregador desse mesmo grupo. Como bem desvendou Freud, somos tão aptos a amar quanto a odiar. E, quanto mais um grupo for capaz de dirigir para fora de seu círculo o ódio latente que o atravessa, mais unido este grupo pode se fazer no amor que resta entre os seus, amor que pode estar baseado, inclusive, no ódio tornado comum ao que não é espelho”.
Ódio
Segundo o especialista, ao longo da história o ódio tem sido fermento para tudo que aconteceu. “Como a história tem mostrado, o racismo pode ser visto como uma gestão do ódio potencial que todos portamos, sob a lógica do “narcisismo das pequenas diferenças”, como parte de estratégias de dominação socioeconômica, político-cultural e religiosa. Freud tem uma visão dura, apesar de fática, da realidade, quando diz que é “sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade”. A instrumentalização dessa agressividade é o próprio horror na Terra”.
A consciência vem nesse momento, para quebrar esse elo da continuidade do costume. O que antes era visto como normal, não pode ser mais, não faz sentido, tendo tanto conhecimento, acesso à cultura, informação. Não podemos permitir.
“Ainda que uma potência da nossa espécie, a violência não pode jamais se naturalizar ou se justificar. É um desafio a ser enfrentado por todos e em todos os tempos, dar outro destino à energia das pulsões mortíferas, assim como coibir os laços sociais que se sustentam no desprezo à dignidade do outro. Por isso, o avanço nos processos civilizacionais precisa se incrementar, especialmente na discussão acerca da base humanística de nossos laços sociais, com mecanismos cada vez mais eficazes de contenção das violências que perversamente categorizam, desumanizam e objetificam o semelhante. O racismo não é digno da condição verdadeiramente humana, de uma civilização que se queira humanística de verdade”.