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Prejulgamentos

Julgar alguém demanda um sem-número de fatores, dentre eles a capacidade para exercer juízo de valor acerca de fatos, circunstâncias, elementos, contextos e versões que povoam e terminam por influir definitivamente na formação de convicção daquele(a) que ao cabo de uma série de atos, todos eles havidos dentro do que se denomina “devido processo legal”, profere uma decisão capaz de interferir, legítima e legalmente, na vida daqueles que estão envolvidos na questão.

Diversamente, no instante em que alguém, despido muitas vezes de condições técnicas, culturais e de informações imprescindíveis ao ato de julgar, externa sua sentença pessoal sobre qualquer assunto, ato, fato ou situação, está-se diante de perigoso e, na maioria das vezes, inapelável juízo de valor que mais que corrigir a pretensa injustiça, aprofunda-a, aumenta suas margens e inclui em sua esteira de danos pessoas que de forma alguma contribuíram para sua ocorrência.

Nesta semana vivemos dois casos de grande repercussão social, uma de extensão nacional (o caso da menina de 11 anos que engravidou após manter relações com o filho também menor de seu padrasto, ambos com aparente convivência familiar e conivência dos seus maiores responsáveis), e outro de repercussão estadual (o caso da professora universitária que, em uma aula de moda ou algo afim, trouxe à baila uma discussão sobre tatuagem e provocou acaloradas discussões em redes sociais a pretexto de supostamente ter a mesma praticado o abjeto, nojento e vil crime de racismo).

No caso da menina, vítima múltipla de péssima educação familiar, negligência de sua mãe e de seu padrasto, condescendência criminosa de ambos com relações sexuais praticadas ao que parece corriqueiramente por ela e por outra criança de idade também menor e, ao fim, de concepção no mínimo indesejada em razão do pressuposto de que não possuíam, ambos, ela e seu irmão postiço, capacidade de discernir as consequências de seus atos, a recusa do hospital inicialmente procurado para o procedimento legalmente possível de abortamento do feto em razão de limite técnico estabelecido por autoridades de saúde motivou a procura pela autorização judicial.

Em casos tais, não basta apenas o relato da situação gravídica e da recusa do procedimento, mas o juiz responsável (e, no caso de menor, o Ministério Público) tem a obrigação de prescrutar todos os elementos que formam o contexto, inclusive a autoria e a materialidade do crime de estupro de vulnerável, para providências criminais que são imediatamente decorrentes. Além disso, o ato de aborto não se dá de forma automática, apenas como se pudesse alguém apertar um botão em um painel, e o assunto se resolvesse.

Mais ainda, quando o Estado-Juiz se substitui a uma atividade técnica especializada entregue ao crivo e à prática de profissionais ou serviços de outras áreas do conhecimento, suas decisões devem ser balizadas por elementos de convicção forjados à luz da técnica e da ciência que regulam e emolduram procedimentos que expõem a risco (no caso) o paciente, fora o fato de que se estava diante de uma menina de 11 anos, exposta a um ambiente familiar contaminado, com idade gestacional avançada e outros elementos que agravavam mais ainda o desfecho, fosse ele qual fosse.

Não bastasse ainda todos esses fatos, ainda se viu imagens de uma audiência havida sob segredo de justiça por previsão legal vazadas criminosamente por alguém ali que deveria preserva-las, e expostas à execração pública em redes sociais, forjando um sem-número de avaliações muitas delas apenas superficiais, outras tantas preconceituosas, que jogaram lenha em discussões de matizes religiosas, ideológicas e até políticas nenhuma delas preocupada em preservar a situação da menina, mas apenas de fomentar duelo de narrativas à cata de insanos “likes” e “compartilhamentos”, vetores atuais dos valores sociais em voga.

Já no caso da professora, ao que se conhece do caso, não há a mais mínima semelhança entre o que se atribuiu á mesma e o que se concebe como racismo, que é o menoscabo, a discriminação, a diminuição do outro em razão de suas origens étnicas ou, como modernamente alargado pela jurisprudência, suas preferências sexuais e outros elementos de diversidade. No âmbito dos chamados crimes contra a honra – no caso a injuria racial – o que importa para definir sua prática é o que se disse ou o que se escreveu, não o que foi compreendido pela suposta vítima.

Para ficarmos no campo apenas da etnia, chamar alguém pela alcunha de “negão” pode ser recebido como um carinhoso apelido, ou por uma abjeta discriminação, daí porque se torna imprescindível a avaliação do contexto no qual esse termo foi utilizado. Dizer, tornando ao caso, que tatuagem é feia e que feita em peles de tonalidade mais escura aparenta mancha cutânea, à primeira vista revela apenas a impressão pessoal de quem assim se pronuncia, podendo, claro, também ter sido expresso para ofender alguém que decidiu fazê-la (a tatuagem).

Daí a importância de se avaliar o contexto mesmo antes de se concluir pelo indiciamento criminal de seu apontado responsável. Em quaisquer dos casos, quem avalia esse contexto e todos os elementos que o compõem são pessoas tecnicamente capacitadas para fazê-lo, não meia dúzia de “achólogos” que recebem informações recortadas em redes sociais e de pronto aderem ou se solidarizam à versão que mais lhes parece condizente com os discursos de gênero, de raça, de credo ou qualquer outra bandeira que lhes sê parece simpática abraçar.

É possível que crimes tenham sido praticados em ambos os casos? Sim. Em casos tais impõe-se a responsabilização daqueles que foram comprovadamente seus autores? Sim. Mas tudo isso depende de avaliações, estudos, provas e ponderações próprias aos profissionais oficialmente destinados a fazê-lo, em ambiente, forma e seguindo métodos adequados.

Prejulgamentos são sempre a pior resposta para qualquer comportamento humano, porque revelam desequilíbrio de quem os faz e pouca inteligência de quem com eles contenta-se.

Gustavo Varella Cabral
Gustavo Varella Cabral
Advogado, jornalista, professor Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FGV

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