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O horror político e social de ‘O Nó do Diabo’

Talvez seja uma facilidade da crítica – da imprensa em geral. Colar etiquetas que, no fundo, podem ser reducionistas. O Nó do Diabo, em cartaz, é – seria – o Corra! brasileiro. Como admirador do longa vencedor do Oscar de roteiro original, para Jordan Peele, o diretor Ramon Porto Mota, que assina dois episódios de O Nó do Diabo, o primeiro e o último, só tem motivos para se sentir lisonjeado. “É um filmaço, o Corra!” Mas quando o repórter lembra Esposas em Conflito, de Bryan Forbes, 1975, (quase) clonado por Peele, ele diz que conhece o filme antigo. E observa.

“Gosto muito de Corra!, mas a parte de comédia é melhor que a de horror.”
Ramon fala com o repórter de Campina Grande, sede da produtora Vermelho Profundo. “Minha formação é de historiador. Sempre me interessei pelo período da escravidão porque nela está a pedra fundadora da estrutura social brasileira, que persiste até hoje.” Ramon, descendente de índios e portugueses, esclarece. “Como tenho a pele branca, todo mundo pergunta o porquê do meu interesse pelo tema. Já falei da minha formação como historiador, mas também é necessário destacar que estou desconforme com a situação política e social do País. Esse não é o Brasil que eu quero.”

Na semana passada, homenageada no FIM – Festival Internacional de Mulheres -, Zezé Motta, que interpreta o episódio final de O Nó do Diabo, lembrou sua trajetória, e a mítica Xica da Silva, que a projetou, nos anos 1970, no Brasil e no mundo. É uma imagem emblemática do cinema do Brasil. Zezé, como Xica, com sua carta de alforria, avança cheia de alegria para a igreja, cuja porta se fecha na cara dela. A sociedade dos brancos não abre mão assim de seus privilégios. Isso vale para o passado, e o presente. “Temos mais de 3 mil quilombos no Brasil e os quilombolas seguem discriminados”, diz Zezé, guerreira nas causas do feminismo e do racismo.” Não está sozinha. “Toda a equipe de O Nó do Diabo pegou junto no esforço de fazer uma obra de resistência e militância.”

“Sou um diretor de horror, todo mundo me conhece como cineasta de gênero. O Nó do Diabo já nasceu com esse perfil, mas com a vocação de ser um filme de gênero para espelhar a situação social e política brasileira.” Pode muito bem ser que este ano de 2018 venha a ser um marco para o cinema de gênero no País. As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, que subverte códigos, fez sucesso de público e crítica na França, e foi parar nas páginas da prestigiada Cahiers du Cinéma. “Pode imprimir que considero Juliana a grande diretora dessa geração”, diz Ramon. De volta ao filme dele, do seu coletivo, ele diz que a obra nasceu horizontal, com a equipe miscigenada, de brancos e negros, participando de todas as etapas do processo. “Para a gente, sempre foi muito importante o lugar da fala. A fala da conceituação da obra, do roteiro, da iluminação, da direção.”

Embora seja um filme em cinco episódios e quatro diretores, O Nó do Diabo passa a impressão de ser obra unitária. “Justamente por sermos vários diretores, o conceito da luz foi definido e perfeitamente executado pelo mesmo diretor de fotografia, o Leo(nardo) Feliciano, em todos os episódios”, conta Ramon. Outro aspecto fundamental – “Se estamos falando da fundação da estrutura social brasileira, então a questão territorial é decisiva. O filme começa em 2018, numa disputa por terras, e vai recuando até 1818. Em todas essas etapas, a luta pela terra perpassa as histórias e existe sempre esse lugar mágico de bonança e liberdade” – o quilombo?

A pergunta que não quer calar – O Nó do Diabo concorreu em Brasília, no ano passado. O festival é considerado o mais politizado do Brasil. Sendo um filme de gênero, foi considerado em pé de igualdade com os demais, ou a tendência foi colocá-lo à parte? “Acho que o mais importante nesse projeto foi nossa absoluta transparência. Esse filme é o que é, com seus códigos. E o público percebe isso.” Em São Paulo, entre outras salas, O Nó do Diabo está no circuito Spcine e no Olido, uma sala localizada na área central da cidade. O circuito possui salas por toda São Paulo, e nas comunidades. Havia bom público no sábado à tarde, quando a sessão batia com o jogo entre Rússia e Croácia (quando o filme terminou, ainda foi possível conferir a prorrogação e a decisão nos pênaltis). Houve gente que saiu durante a projeção. A maioria não apenas ficou, como saiu comentando as intenções, e o resultado.

Por ser de gênero, a tendência é comparar com as produções que a indústria cultural, leia-se Hollywood, despeja no mercado brasileiro (e internacional). O Nó do Diabo sustenta-se? “Corra! é grande e chegou referendado, o que praticamente obrigou o público a ver o filme que já era um fenômeno social e artístico. A gente não possui esse referencial prévio. Tem de criar, o que é sempre difícil.” No último episódio, mortos-vivos – esses seres bizarros que hoje inundam a ficção – integram-se à luta por direitos. Uma concessão a Hollywood? “Estou aqui com um livro na mão, Monstros e Monstrengos do Brasil, com prefácio da Mary Del Priore.” Um peixe que tem pedras no lugar dos miolos, um molusco que menstrua como as mulheres, um gambá cujo fedor deixa um homem ou um cavalo desacordado durante três ou quatro horas, etc. “Colocamos o morto-vivo que está no imaginário do público, mas a zoologia fantástica brasileira é inesgotável e poderia alimentar muitos filmes.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Luiz Carlos Merten
Estadao Conteudo
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