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Livro de José Agrippino que circulou em cópia mimeografada por mais de 50 anos ganha edição

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A trajetória de José Agrippino de Paula é acidentada e cíclica como a de alguns cometas. Em cerca de uma década, entre 1962 e meados dos anos 1970, produziu livros, filmes e peças teatrais, encarnando um tipo de artista que se popularizaria somente anos depois, o multimídia. 
Agora, em nova vinda do cometa tropicalista, ele ressurge com o quase secreto “As Nações Unidas”, texto teatral lançado agora comercialmente pela primeira vez. A obra originou a peça “Rito do Amor Selvagem”, lembrada no documentário homônimo dirigido pela videoartista e curadora Lucila Meirelles, que tem exibição nesta segunda (16), no CineSesc, em São Paulo.
Encenado pelo grupo Sonda e dirigido por Agrippino e sua mulher, a bailarina Maria Esther Stockler, morta em 2006, o “mixed media” (como o definia o próprio autor) “Rito do Amor Selvagem” estreou em São Paulo em novembro de 1969 no Theatro São Pedro, um ano após o AI-5 ter sido decretado. O texto foi extraído de quatro cenas originadas de “As Nações Unidas”.
As experimentações do casal no palco se iniciaram no ano anterior, com a peça “Tarzan Terceiro Mundo” e o espetáculo “O Planeta dos Mutantes”, primeiro show da banda de rock paulistana, com figurino, cenografia e iluminação de Agrippino e direção de Stockler.
Em 1967, o autor havia publicado o romance “PanAmérica”, preconizador da tropicália, ao lado da adaptação de “O Rei da Vela” pelo Teatro Oficina, dos parangolés de Oiticica, de Glauber Rocha com “Terra em Transe” e dos livros de Jorge Mautner. E o demais é barulho, exceto pela ficção de Agrippino, sempre envolta em silêncio.
Conhecida como a terceira ponta do tridente da obra literária do escritor paulista, inaugurada com “Lugar Público” (1965), “As Nações Unidas” circulou apenas em cópias mimeografadas da versão em inglês feita pelo desconhecido John Procter, numa tiragem realizada pelo próprio Agrippino datada de 1968. 
A reedição que chega agora ao mercado pela editora Papagaio é organizada pelo jornalista João Valentino Alfredo, fruto da comparação entre a tradução de Procter e a única cópia conhecida do original, registrada na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, a SBAT, em versão datilografada “com resquícios de rascunho”, segundo o organizador, e pequenas rasuras, rasgos e borrões.
Sérgio Pinto de Almeida, o editor, não sabe explicar o motivo de o livro tardar 51 anos a ser publicado. “Ninguém correu atrás, acho. Quando apareceu o livreto em inglês após sua morte, foi só comparar e constatar que eram praticamente idênticos ao original registrado na SBAT.”
Na edição mimeografada há um endereço do tradutor, morador de Copacabana. O editor o procurou, mas ele já não morava por lá e ninguém tinha conhecimento dele.
Na mesma edição independente também aparece um carimbo na contracapa, cuja mensagem assinada pelo autor (em inglês) revela: “Esta peça foi censurada em meu país, o Brasil. Agradeço de antemão a todos aqueles que ajudarem em sua difusão.”
Herdeiro direto do The Living Theater, grupo experimental dirigido por Julian Beck e Judith Malina, o grupo Sonda de Agrippino e Maria Esther marcou a contracultura brasileira e a produção teatral daquele momento com “Rito do Amor Selvagem”.
No documentário de Lucila Meirelles, o cineasta e fotógrafo Jorge Bodanzky, habitual parceiro de Agrippino, ao descrever a balbúrdia que misturava rock, acrobacia circense e violência mútua entre plateia e atores, conta que estes últimos “eram os mesmos que fizeram ‘Tarzan’ e ‘Hitler 3º Mundo’ -o filme dirigido por Agrippino em 1968, com Jô Soares, Eugênio Kusnet e Ruth Escobar–, com quem convivi muitos anos. Era uma comunidade.”
A quase ausência de registros da peça, exceto pelas fotos de Bodanzky (ele chegou a filmar apresentações, mas os negativos se perderam), atribui ao documentário de Lucila um caráter meio etéreo, acentuado pelo evidente esforço dos entrevistados de recordar algo ocorrido há meio século, em meio a tantas nuvens e temporais, impossível de ser resgatado.
Entre os entrevistados estão Sérgio Mamberti, Hermano Penna, Tom Zé e Stênio Garcia, protagonista do “Rito”, que relembram a montagem que culminou em invasão do teatro pelo público com a derrubada da porta.
“Acredito que nos anos 1960 não havia uma vontade política para se criar registros da contracultura, ainda mais audiovisuais”, diz Lucila.
“Foi a partir da ausência desse registro que nasceu a ideia de fazer o documentário, pois não existe nenhuma memória, nenhuma construção audiovisual dessa ópera-rock, que faz parte do inicio da performance contemporânea no Brasil.”
Em entrevistas no fim da vida, o escritor mencionou a literatura como uma expressão conservadora. “Depois da arte pop, escrever o quê?”, afirmou. Em “Lugar Público” e “PanAmérica”, José Agrippino de Paula, além de acreditar no caos, ainda acreditava na literatura. Com “As Nações Unidas” e “Rito do Amor Selvagem”, porém, já não acreditava no poder da palavra e em mais nada, a não ser no caos.
O editor da Papagaio destaca que o novo livro não tem limites, não está preso a concepções estéticas e muito menos políticas. Na estrutura fragmentária da peça, o que persiste é o clima efervescente de confrontamento do período, violento como o que assistimos agora, numa contundente alegoria das trevas. 
“Bolsonaro talvez discurse na ONU no próximo dia 24 de setembro”, lembra Sérgio. “Ele deveria ler ‘As Nações Unidas’ na viagem. Quem sabe o espanto com o livro lhe faça bem.”

Autor: JOCA REINERS TERRON

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